quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

O menino vai nascer


Ah, Blanquita, seria bom que você estivesse aqui.
Para ver a fúria com que o povo se atira às compras.
Até os tarados não mais dizem vou às mulheres.Monocórdios e repetitivos, em estado de nítida ereção
consumitória, anunciam: vou às compras.O trânsito, se visto lá de cima, obrigaria Jeová
a repensar à criação do mundo.
Ou seja, em matéria de caos, o nosso trânsito
dá de dez a zero naquele que precedeu a criação do paraíso
e o momento proibido e gostoso que Adão e Eva viveram.
Quanto ao gostoso, nem digo tanto. Os dois, certamente,
pecaram pela inexperiência.
O verbo pecar, ai, por favor, arrume a semântica direitinho,
para saber onde quero chegar.
E chegar é o mais difícil nestes dias turbulentos.
Mineiro, que já carrega o estigma de chamar a gente
e ir andando
, neste dezembro bate todos os recordes de impontualidade.
Encontros, não os marque.
Mesmo aquele por que se esperou meses. Ou anos.
Você, se reaparecesse de repente nesta galopante cidade,
jamais me veria chegar como um Concorde em viagem
inaugural.
Ou como cavalo pampa de vovô Vicente, que arrasou
com um cavalo alazão de Conceição de Mato Dentro, numa
corrida que inventaram em Carmésia, então chamada Viamão,
ali pelos anos 20.
Corria-se, a cavalo, naquele tempo.
Afora o ecológico esterco que produzem, os cavalos não provocavam engarrafamentos.
Nem buzinas. Mal e mal alguns relinchos de satisfação, vez por outra. Então, a vida trotava em poesias.
E tranquilidade.
Foi só virar a esquina da memória e lembrar-me do cavalo
de vovô e nasceu uma súbita paz no ar.
Como aquele moço de Itabira, grande poeta, estou sozinho no quarto.
E sozinhíssimo nas Américas.
Eu, minha máquina de escrever, umas azeitonas que
pesquei na geladeira. E uma bebida num cálice.
Dizer verdade, nem sei qual seja. A bebida.
Pus duas pedras de gelo num copo, enfiei a mão no
barzinho – aquele de vime, você conhece –, peguei o primeiro
litro que achei, abri, fui pondo.
Enchi o copo, até à borda. E vou tomando. E escrevendo.
Nunca menti para você. Assim, confesso que já estou no segundo cálice.
Ou será o terceiro?
Nem me lembro.
À medida em que eu vou batucando a memória e bebendo, vou-me sentindo incomodado. E com um gostinho de frustração.
Porque sinto você por perto.
Claro, você não está.
Não vai haver ruído de campainha tocando.
Nem telefone chamando.
Talvez o interfone do prédio chame.
Mas para dizer que a conta do telefone chegou.
Ou da luz. Da água, não, já vem na taxa do condomínio.
Não consigo ficar sentado.
Chego à janela.
Aqui da Serra vê-se quase toda a cidade.
E as luzes, em forma de árvores, de flores ou do que
seja, explodem pelas encostas, pelas ilhargas dos
edifícios, pelas esteiras de fios espichados nos
vãos das praças.
Das bandas oeste da cidade, vem o ruído pesado do tráfego.
Quase dez da noite.
Os compradores estão voltando para casa.
Não há como desmentir.
É o Natal que está no ar.
Volto da janela. Sento-me. É preciso terminar esta conversa.
Pois que se acaba a crônica.
O que não acaba é essa súbita vontade de continuar bebendo.
E fazer alguma coisa.
Chorar, talvez.
Texto: Márcio Rubens Prado.
Imagem: Autor desconhecido.

domingo, 20 de dezembro de 2009

Nuestra Señora Mercedes

Nuestra Señora Mercedes,
canta por nosotros.
Canta todas las canciones
de latinostalgias,
canta todos los hinos
de angustiamérica,
canta todos los brados
de tus pobres hijuguetes,
canta por nosotros,
nuestra señora Mercedes.

Canta, señora Mercedes,
que cantar es tu sina,
cantar es tu castigo,
cantar es tu camino
de dolor y de mágua,
mas también de amor y glória,
de lucha y victoria,
de conquista y libertad.

Canta eterna por nosotros,
nuestra señora Mercedes,
sosamericana,
tucumana,
humana,
mana.
Poesia: Melchiades Cherubino.
Imagem: Autor desconhecido.

domingo, 13 de dezembro de 2009

Rastro


Da alma
vem a música para ser sentida.
A magia deixa o rastro.
Solta cores, solta risos.
No frescor da noite,
vivem a saltar e cantarolar.
Com a dança brilha a lua,
vibra a vida, sorri as flores.
Sons psicodélicos
buscam anárquicos ouvidos.


Poesia: Diane Mazzoni.
Imagem: Bruno Grossi.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

O LIMITE

Eis que surge o limite
O limite da vida
A agonia da alma
O segundo ínfimo
Da dor do passado
O momento retrátil
Do último suspiro
O alcance fugaz
No caminhar enfraquecido
O corpo molhado
De esforço e ingratidão
Os olhos inválidos
O coração vital
O sangue vívido
De um ato vital.

Texto e imagem: Bruno Grossi.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Essa vida não me quis


Dançarina
queria palco sempre quis
roupa de brilho coque
fru-fru e rosa
choque
Sapatilha entregou os pés
aos salto
saltos estreitos
que a trancos e barrancos
se equilibram sobre
paralelepípedos, buracos
vazios que me lotam a alma
desespero
sobressalto

Palco mesmo é rua de poste
com sorte um afago
gratuito. Carona sem cobrança
ou desconto no preço final
talvez lembrança de vida
sonhada
que não o inverso
que não a morte

Dançarina que não fui
Pari filho sem pai
foi ballet desesperado
em noite sem gala
beco num pulo vira maca e
sem treino obra de quem?
aconteceu João
mirrado magro pequeno

O filho hoje vai bem
obrigada
dança funk na quadra
Do Morro
lava minhas roupas
me toma nos braços
me compra música bonita
me devolve um pouco
daquilo que em mim é sonho
um pouco de mim
parte tomada

E as manhãs
todas
vem João pés descalços
senta ao chão de cimento queimado
pede dança
antecipa palmas
e bis e olhos vidrados

Eu bailarina exata
boto a velha sapatilha
apertada
mando-lhe beijo no ar tomo fôlego ergo a cara
e sou só entrega
ao filho legitimo da puta
(que me olha que me devora)
e desejo sorte vida leve
amor de gente pluma

João nem sabe
ao menos por palavra concreta
mas é ele, só ele o
único homem que me viu chorar.


terça-feira, 13 de outubro de 2009

CONVITE DE PRIMAVERA


Dia desses ou daqueles,
Depois que o sol se cansar,
Depois de secar o suor da labuta,
Após a sonâmbula jornada cumprida,
Acho que podemos, quiçá devemos.

Rendemo-nos a longos e sonoros suspiros,
Que sem aviso, cúmplices, se transformam
Em sorrisos de alívio.

Deixemos de lado o horário útil
Deste dia inútil e suas fadigas,
Para semearmos na noite
Gozo e emoção.

Sem pressa...

Despojados acrobatas
Num embalo amoroso e rítmico,
Cheio de piruetas e saltos e...
Mãos dadas.

Num só tempo,
Sob os poderes primaveris,
Esquecemos o passado carregado
E o futuro incerto,
Entreguemo-nos presentes ao encanto imponderável
De um mundo possível de todas as flores.
E frutos.

De um mundo inocentemente erótico,
Vagarosamente trágico,
Além de mim, de nós,
De toda poesia criada,
Além dos ventos que trazem o diz-que-diz-que,
E promovem tantas incertezas, tantos desencontros.

Seremos, enfim, neste momento,
Apenas dois seres impermeáveis,
Permanentes na mais honesta estação:
A do desejo de amar sem culpa.
Daniel Rubens Prado,
Primavera de 2009.

domingo, 27 de setembro de 2009

As paredes da minha casa

As paredes da minha casa são brancas
São incrivelmente brancas pintadas de cal.
Cal virgem; queimado com água,
E pintado com brocha.

Duas paineiras imponentes e belas
Dão cor e vida à minha casa.
No verão, verde e sombra.
No outono, duas sentinelas.
No inverno, flocos de paina.
Na primavera?
Ah! Na primavera, as paineiras
E as paredes brancas da minha casa
Tornam-se rosas.


Poesia: Carlos Niquini.
Imagens:
Sandra Nunes.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009


Sempre desejei beijo de puta
Roto homem que sou
As via esquinas
vias ruelas
calçadas povoadas de justas
calças brilhantes
salto alto bustiê

Sempre desejei beijo de puta
Antes mesmo de tê-las
Nuas
cigarro entre os dedos
indicador e aquele que indica
onipresente – o caralho
vaivém de fumaça e bicos
dos seios
vermelhos rubros quebrados

Sempre desejei beijo de puta
por sabê-las intocadas
alma bruta vaga
mulheres sem nome
endereço ou
parentesco
janelas sem violetas
vidas feito essa
a minha
de remendos.
Texto: Val Prochnow.
Imagens: Pixel Welten - Smoking Babes.

sábado, 5 de setembro de 2009

EM OUTRO ANDAR


Dentre todos os momentos ao longo de onze anos, mais um fica guardado em nossa extensa memória. Claro que, desta vez, havia uma conotação diferente. As emoções eram dolorosas, já inesquecíveis e tão saudosas. Assim como todo o cenário em que éramos acolhidos.

Os quadros já não estavam mais dependurados. Os móveis já se encontravam vazios. As plantas prontas para embelezar um novo ambiente. A brisa gelada indicava o início de um inverno destemperado. Mas estávamos sorridentes. E o mais importante, entre amigos!

Muitas vezes recusamos a entender certos acontecimentos. Tentamos lidar com o menor amargor possível. Damos a cara à tapa para os fatos, tentando enfrentá-los como bárbaros guerreiros. Mas hoje, nada se resolve na ponta da espada.
A vida é provida de mel e de muitos ferrões. A dor é constante, assim como o prazer de viver. Inconscientes, seguimos nossos princípios, herdados de quem nos criou e nos concedeu amor. E é vivendo a vida com coragem que vencemos barreiras.
É preciso ter cuidado. Mas, mesmo assim, distraídos ainda somos mais felizes.

Ah, quanta boemia naquela varanda... Quanta poesia, amor e alegria plantados em inúmeras pessoas. Quantos corações dilacerados e também reencontrados, quantos flertes, quantas confissões e lágrimas foram derramadas por ali. Que a futura família consiga semear um pouco desta riqueza, desta doçura, desta história.

Não restam dúvidas que a pureza destes momentos servirá de lição. E como toda e boa dedicada nação, de maneira alguma, isso terminaria em vão. Afinal de contas, P4* não era uma armação, sempre foi praticado e seguido como uma religião.

O P4 termina, mas não acaba. Aliás, nunca acabará! Estará guardado para sempre, em vários amores, infinitas amizades, inúmeras famílias.

E, quem sabe, renascerá em outro andar?

(Por que não?)



Texto: Leonardo Deoti, em 02 de maio de 2008.
Imagens: Daniel Rubens Prado.

* P4 foi um lar para muitos. Um apartamento no colo da Serra em que vários amigos de eutanásia beberam, sorriram e choraram. Viveram bons momentos, sabendo que felicidade, quando é boa, é partilhada.

EM MEMÓRIA DE EGLY FORTES DE SOUZA.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Volta


toda a força para manter
vivo
e de repente o amor se vai

fica a saudade
a paz vai embora
e a felicidade

volta
traz minha vida de volta
ou fica logo com esse pedaço
com esse bagaço
que é seu




Texto: Bella Grossi
Imagem: Retrato de Natasha Nesterova (On a Garden Bench),

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

BH-MG-BH

Com direito a bairrismo


Belo Horizonte de esquinas vadias, de famílias tradicionais. Belo Horizonte do vai-e-vem da Praça VII, da fé às margens da Lagoa da Pampulha. Belo Horizonte segura na mão de Deus, orando suave na beleza humilde da Igreja de São Francisco, sem esquecer os pobres irmãos meus.

Belo Horizonte boêmia, das ruas transversais, nas paragens interioranas do bairro Santa Teresa. Belo Horizonte da cervejinha gelada, do sabor do tira-que-dá-gosto e da graça de sua cachaça. Belo Horizonte na embriaguez suave das serenatas, do Clube da Esquina e minhas meninas.

Belo Horizonte das curvas de Niemeyer, BH de JK, das charmosas mineiras, dos desconfiados pés atrás. Belo Horizonte Curral de Minas, das Serras; Belo Horizonte de suas praças e parques. Belo Horizonte de um verde ímpar, inconfundível. Belo Horizonte de céu azul, onde o Galo canta para acordar o Cruzeiro do Sul.

Belo Horizonte das vilas e favelas, aglomerando cultura e história nas veias de seus moradores. Belo Horizonte de desilusões e amores; Belo Horizonte de esperanças de curar todos os males e dores.

Antes de qualquer coisa, Belo Horizonte é mineira. E sua mineirice, ainda moleca, vive e cresce com o ideal intrínseco de liberdade – ainda que tardia. Belo Horizonte é a cidade dos mineiros e muitos mais – Belo Horizonte é do Mundo, Belo Horizonte é Minas Gerais.

Djalma Gonçalves

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Um coração oprimido


Elegia à Augusto Boal
O dia que se vai
Ao derradeiro leito impermeável
Um corpo, um monólogo

Um coração oprimido

O peito aberto para o povo

Uma arena em chamas
Devaneios sociais, políticos, outrora
E a arena continua em chamas

Representação mútua
Lágrimas insanas
Sorrisos claustrofóbicos
Um insubstituível coração

Por Bruno Grossi.
Imagem: Autor desconhecido.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

A Casa dos Pais


Botaram plantas e flores e peixes e pedras e cimento e motor e grama. No que antes era nada fez-se fonte cascata barulhinho de água - pequena cachoeira: tem quintal na casa dos pais. O quintal da casa dos pais tem chão fértil que aceita tudo, árvore flor passarim. Qualquer bocado de vida multiplica, vira calango joão-de-barro orquídea tucano banana peixe galo manga formiga. E mais.

O pai acorda cedo, a mãe dorme tarde. Os dois. A casa dos pais, onde o amor nasce bruto, lapida os sentires todos: conversas sorrisos silêncio afetos escolhas verdades ação e cochilo depois do almoço. Algumas caseirices teimam em pontuar os encontros e isso é bom: a casa dos pais acorda os sentidos e os porquês.

Criança tem. Duas. A casa dos pais é também casa de avós. Balanço mora no galho generoso da mangueira, brinquedos espalham alegria cor e bagunça pelo chão. A mãe-avó faz as vezes de professora para a neta mais velha e despe-se de adultices pra brigar – como se dois ou três anos tivesse – com a neta mais nova que sabe bem o que quer. Pai-avô é só ternura, embora se porte feito pai mandão que nunca fora quando alguma das netas se esborracha no chão.

O sol entra de manso pela fresta da janela. O dia corre pelos jardins, passa rápido, ora leve, ora agitado e a noite deixa todos ainda mais tagarelas. A mãe das pequenas ri. É mãe, irmã e filha. Tudo junto e separado, é mulher, ainda. E menina. A irmã do meio é todo um universo. Chega sempre com descobertas e traquinagens. Sempre fora assim, dada aos prazeres. Descobriu outro dia que vai viver mesmo assim, cercada de brincadeiras. A mais velha tem mais dúvidas do que respostas, mas gosta, vez ou outra, de botar reparo no entorno. E tenta fazer disso alguma poesia.



Texto: Val Prochnow.
Imagem: Quintal da Vovó, por Ronaldo Golveia.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Crise. Que crise?


Era um mês de janeiro. Às margens do Rio Graipu, o distrito do Correntinho, humilde distrito do glorioso município de São Miguel y Almas de Guanhães, sofria sob uma chuva torrencial. Do céu cinzento desciam contínuos aguaceiros, mais fortes do que jato de chuveiro de motel cinco estrelas.

Não era só a chuva, mas os tempos, em geral, estavam difíceis para o vilarejo. A quebradeira era geral. Todos tinham dívidas, o dinheiro sumira da praça. No caso, pracinha, pois Correntinho era um cochichó de distrito. Tudo era no fiado, no beiço, no pago-amanhã. Uma tristeza.

Pois foi num dia desse janeiro chuvoso que chegou a Correntinho um viajante abonado. Dirigindo um jipe com cara de ter saído recentemente do berço, digo, fábrica. Ao descer na porta da única pensão do Correntinho, comprovou sua condição de abonado ao entrar no saguão (?) batendo um espetacular par de botas, metido num não menos competente par de galochas. E essa aparição nababesca completou-se com a figura do cidadão abrigada sob um vistoso chapéu Cury - “o chapéu para quem tem cabeça”- e uma capa Ideal estalando de nova. Tão nova que, mesmo molhada até os sovacos, nem exalava aquele pavoroso fedor de cachorro molhado.
Entrada triunfal completada, o distinto recém-chegado vai até o balcão da portaria, espicha uma nota de 100 cruzeiros e informa ao Seu Millô, porteiro, dono e guarda-livros da pensão:
– Os quartos são lá em cima, não? Depois daquela escadinha, né? Eu mesmo vou lá escolher um.

Nem esperou resposta. Dirigiu-se logo para a escada, ao mesmo tempo em que Seu Millô, rinchando de satisfação, passa a mão na nota de 100 cruzeiros. E sai porta e chuva afora correndo, a fim de pagar sua dívida com o açougueiro.

O açougueiro, que nem sonhava com dinheiro vivo, ainda mais debaixo de um chuvaréu daqueles, emitiu um caloroso rosnado de agradecimento. Despachou Seu Millô e saiu, também correndo, para pagar ao seu fornecedor de carne, o criador de gado Seu Marçal, que, felizmente, era seu vizinho.

Seu Marçal, agradavelmente surpreendido ao enrolar um cigarro de palha, recebeu, aturdido, aquele dinheiro que não esperava. Resmungou uma desculpa para a mulher que labutava no interior da casa e, tal qual gato andando em desenho animado, deslizou, sorrateiro, para a chuvarada que caía lá fora. Corre apressado pelas quinas da rua, com jeito de espião na II Grande Guerra, para acertar as contas com a prostituta Basti, que, exatamente por causa da crise, dera fiado pra ele (quatro vezes).

Cuja Basti, agradecendo com um beijo que breou de batom o assustado Seu Marçal, voa para o hotel, chama Seu Millô e paga a ele o aluguel, atrasado, do quarto que usava para atender à sua escassa, porém fiel clientela.

No exato momento em que a transação foi efetuada, o viajante, fazendo cara de entojado, volta ao saguão do hotel e demole Seu Millô, informando:

- Escolhi um quarto lá em cima e resolvi tirar uma soneca. Um desastre. Mal mal peguei no sono, fui atacado por uma manada de pulgas que me ferroaram todo. E, pior: uma esquadrilha de burrachudos quase me devorou vivo. Onde já se viu burrachudo de dia, Seu Millô? Num fico aqui nem morto. Me dá meu dinheiro de volta. Tô sumindo.

Recebe os 100 cruzeiros de volta, dá um toque na aba do chapéu, entra no jipe e escafede.
Seu Millô, com um jeito de nem tchum para o viajante, ilumina a cara num sorriso por descobrir que essa tal de crise é invenção do povo dos jornais, pois a solução tava ali, na cara: cada um paga o que deve, honra os compromissos, e a vida vai em frente.

Tão em frente que merece, no mínimo, uma comemorada.

- Quer saber? Oi, Teresa, traz uma cachacinha aí pra mim. Com um torresminho, pode ser?


Melchiades Cherubino
Imagem: Internet.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

terça-feira, 2 de junho de 2009

A FACA E O QUEIJO


Entre todos os dons, o de me deixar partir.
Sempre me abandona pelas mãos.
Faz saber-me seu para dizer adeus.




Texto: Djalma Gonçalves.
Imagem: Hungry For Your Touch, 1971, por Jan Saudek.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Capeirote


“As crianças não têm passado, nem futuro,
e coisa que nunca nos acontece,
gozam o presente”.

Jean de La Bruyère
Quando criança, passava boa parte do tempo na Terra do Nunca. O sobrado de dois andares, branco encardido e com uma fachada capaz de fazer qualquer arquiteto rasgar o diploma, era muito mais que um lar. Os muros chapiscados, que dividiam meu espaço com o dos vizinhos, se impunham como imensas barreiras a serem transpostas, pedindo "por favor" para que alguém as escalasse. Foi uma infância nos ares, subindo, descendo e andando sobre muros e mais muros, com uma destreza e um equilíbrio que só poderiam ser explicados caso meus pais fossem trapezistas ou algo do gênero.

A vida seguia. E eu seguia sobre os muros. Vez ou outra me arriscava e invadia um novo território. Descia em quintais alheios e o coração infantil, influenciado por uma mente fantasiosa, fazia com que meu corpo crispasse. Naquela época não sabia o significado da palavra adrenalina, mas, se soubesse, conseguiria definir a sensação de tocar pela primeira vez em um solo nunca antes explorado. Ser criança é assim: enxerga o mágico onde os adultos só vislumbram o óbvio.

Nós, crianças, apesar dos meus 87 anos, somos capazes de transformar as incursões no quintal do vizinho em uma aventura inenarrável. Subvertemos a realidade em benefício de um prazer inocente, pueril. Vivemos iguais aos manuais de auto-ajuda, dia após dia, saboreando cada momento como se fosse único.

A cada fruta roubada (criança não furta, rouba) das centenas, milhares de árvores que cresciam e floresciam nos quintais vizinhos, eu jogava a realidade por terra, fazendo com que ela perdesse sua força, sua vocação para a chatice, para a falta de graça. Nessas horas, com o bolso da bermuda recheado de frutas, me sentia um usurpador, pronto para conquistar novos mundos e levar comigo o bem mais precioso de cada recanto - na maioria dos casos, uma carambola, uma manga e, quando não dava sorte, alguns limões enrugados.

A infância seguia. E eu seguia sobre os muros. Hoje, aos 87 anos, voltei a pensar e agir como uma criança. Não escalo mais muros devido a uma osteoporose que me pegou de repente. Mas continuo roubando algumas frutas nas gôndolas dos hipermercados só para sentir novamente aquela adrenalina de outrora. Só para lembrar que um dia fui menino, fui moleque, fui criança. Para jamais esquecer que, no dia em que meus pés tocaram pela primeira vez o solo do quintal de um vizinho chamado Antônio, a minha vida ganhou um novo colorido. À sombra de uma imensa goiabeira, um casal de adolescentes se abraçava e se beijava com uma volúpia e uma beleza suficientemente fortes para deixar as goiabas vermelhas por dentro e também por fora. Foi nessa hora que a minha infância começou a flertar com o mundo adulto. E foi exatamente nessa hora que tive vontade de pegar meu capeirote e sair dali voando igual aos super-heróis da Marvel. Ainda era muito cedo para deixar de ser criança.
Texto: Guilherme Carvalho.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Pedido ao Deus-Sol


Que o que foi registrado
em palavras ditas e escritas
em folha de papel
assinado e pontuado
com exclamações e certezas
fique imóvel
no tempo que nasceu.

Feito aquelas fotos antigas
que são bonitas
porque passaram.


Texto e imagem: Ana Flávia Rodrigues.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Todo cuidado é pouco

Para June e Ackel Bracks.

Festa de aniversário de um amigo.
Desses com jeito de irmão.
Com quem a gente gosta de estar sempre junto.
Para aproveitar o calor humano, a cordialidade e o afeto que (ainda) existem neste mundo.
Era domingo.
Dia justo para se ficar à toa na vida. Assim, em vez de filosofar sobre política, futebol e mulheres (mulheres, vírgula, porque a dele, encantadora e vivaz, estava presente; na verdade, era a anfitriã), decidimos dedicar o tempo disponível ao consumo desbragado de cervejas.
Vim preparado. Preventivo como nasci, compareci a bordo de um táxi, cuja placa terminava em “13”.
Assim como as mudanças de temperatura são a maneira mais fácil de dois idiotas começarem uma conversa (vide Dostoiévski), os números também servem para abrir um diálogo. Ainda mais quando o número corresponde ao Galo no jogo do bicho. Razão de o infeliz motorista, atleticano terminal, chorar no trajeto todas as suas pitangas alvinegras. Logo comigo, americano sofredor de papel passado. Lavei minha alviverde alma, ao descobrir que, em matéria de sofrimento, a concorrência tá brava.
Feito este hiato esportivo, voltemos à encharcada festa.
Nem em eleição de miss haveria tantas candidatas desfilando nas bandejas. Os garçons, mais ligeiros que o Barrichello, traziam as cervejas em cascatas. De todas as marcas, de todas as procedências, de todos os formatos, de todas as cores – claras, loiras, ruivas e pretas.
Acompanhadas de tira-gostos dignos de prêmio hors concours no Comida di Buteco. Tão gostosos que este Melchíades, que não troca carne-moidinha-com-quiabo por salmão nem caviar, comeu até aqueles tribufus da cozinha (?) japonesa.
Um dia, um domingo, uma festa de não se esquecer.
Não se esquecer mesmo, porque esqueci um sábio conselho que minha mãe me deu no raiar da minha mocidade: “Meu filho, mulher loura de olho verde é coisa do capeta. Fuja delas”.
Não obedeci. Nem fugi. Entreguei-me, sem moderação, à loura que vinha nas garrafas verdes. Pior, para falar a verdade, a danada nem loura era.
Era ruiva. Jesus na cruz!
Saí, enfim.
Ou melhor, fui levado da casa do amigo em estado horizontal.
Mamãe, como sempre, tinha razão: ruiva de olho verde é coisa do capeta.
Mas tão gostosa...

Texto: Melchíades Cherubino
Imagem: Propaganda da Brahma publicada na revista fon-fon de 1910.
Imagem 2: Propaganda da Antártica publicada na revista Arara de 1907.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Detalhe(?)s


Detalhe parece ser,
para a maioria dos sensatos
e a totalidade dos demais,
aquilo que não se vê (viu! - vil)
ou não se percebe (pelos outros sentidos).

Por essa (idi)ótica,
o HIV(ê) é um detalhe, pois não é visto,
mas é letal,
e deleta
(quem não o viu).

O mesmo se aplica ao
ultravioleta -
afinal, quem u.v.?

Pode ser também o que me disse a Renata
do escritório de Valadares:
“oh!, esqueci esse detalhe...”
(no caso a metragem de um imóvel que avaliara)
perguntei-lhe então o que era essencial na
descrição de uma obra, já que sua área era ...
detalhe”!?
Passados dez verões,
não ouvi(houve) a resposta.
Haverá?
Ah! virá?

Ali, detalhe virou “força de expressão”
(ou seria forca da expressão(?)
- pois mata, pela palavra, o sentido das idéias).
Francamente,
é fraqueza de expressão,
indigência verbal (só verbal?).

Mas, dirão aqueles
(da maioria dos demais):
Isso é apenas, digamos,
um... detalhe.


Texto: Adão Martins Pereira.
Imagem: Nick Handerson.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

ALVO

Eles dizem não,
não se entregue tanto.
Assim têm a ilusão
de que sofrimento
se pode evitar.

Mas quem dirá
que não há sofrimento
em não viver o momento
que só uma entrega
pode criar?

O mundo sempre terá
aqueles que acham
unhas vermelhas bonitas
e outros que acham vulgar.

Então, melhor equilibrar
a paixão do esmalte vermelho,
com a paciência da espera
do cor-de-rosa, mas
não faço a menor idéia
aonde isso tudo vai dar.

Na verdade, não importa
porque no erro ou no acerto
a gente sempre corre o risco
do amor nos acertar.
"Eu espero que algumas sim" - Ana.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

VOVÓ E OS NOMES

(com direito à origem da isca de fígado em São Miguel)
Vovó teve vários nomes. A certidão de idade, de 13 de março de 1875, era Luíza Sidônia. De Diamantina. Onde se formou professora, na mesma turma da conterrânea Júlia Kubitscheck.

Além de Luíza, Vovó foi Minha Mestra, Mestra Luíza, Mãe Mestra, Dona Luíza, Naná e, para nós, os netos, e todos os alunos do recém-criado Ginásio Mineiro de São Miguel y Almas de Guanhães, Mãe Naná. Este último codinome ganhou do primeiro neto, que aprendeu, simultaneamente, a falar “Mamãe” e “Naná”, criado que foi na casa da avó.

Nos primeiros anos em São Miguel y Almas, Mãe Naná era citada como “a dona que comia carne para cachorro”.

Com razão. Quando, recém-chegada, apareceu, pela primeira vez no Açougue Municipal, pediu um quilo de fígado:
- De fígado?

- Sim, senhor, de fígado de boi.

O açougueiro lambuzou-se em espantos:
- A senhora tem algum cachorro?

- Não, meu senhor. O fígado é para eu fazer um picadinho pro meu marido.

O açougueiro, despencando das grimpas da incredulidade, informou:
- Toma aqui. A senhora pode levar esse trem todo. Aqui, dona, só cachorro come essa porcaria.

E, entregando-lhe o embrulho com uns dois quilos de fígado, emendou:
- Toda vez que a senhora quiser mais, pode mandar buscar. Vai ser de graça... na bistunta.

Com o tempo, Vovó, multiplicando conhecimentos e amizades, deu de oferecer às visitas fígado picadinho com pimenta, cebolinha e farinha de mandioca, acompanhados de uma pinguinha de lei. O povo de São Miguel aprendeu. E gostou. Papa fina.

Não vou descrever aqui o rosário de virtudes da senhora minha avó. Como o fato de ter nos ensinado, a mim e aos meus irmãos, as primeiras palavras em francês, ao mesmo tempo que nos alfabetizava. Além do mais, Dona Luíza portava a avoenga verdade que doura a aura de todas elas: avó é avó. O resto são progenitoras.

Eu já morava em Belo Horizonte. Fazia o Curso Clássico. Trabalhava num banco, sofrendo todas as agruras dos estudantes interioranos: milionário em sonhos, zerado em recursos. Morava numa república, ao lado de mais oito companheiros do nordeste mineiro - que, hoje, sei lá porque, passou a ser “leste mineiro”. Geografias... Tais elementos disputavam comigo o penoso título de “o mais pobre”, ou “o menos remediado”.

De vez em quando nossos pais, fazendo mais tripas do que corações, mandavam alguns tesouros. Coisas de altas supimpitudes. Lingüiça feita em casa. Queijos de meia cura. Dúzias de ovos caipira. Doces de lei, em fôrmas de cachos de uvas, papagaios, cachorros, etc. Bandos de luminárias, pés-de-moleque e goiabadas. E mais aquelas coisas que só o coração das mães adivinha e inventa.

Num aniversário meu, mês de maio, Vovó cometeu um desfalque no seu salário de professora aposentada. Num gesto congênito às avós, mandou-me uma nota de 50 cruzeiros. Cédula enorme. Quase do tamanho de uma fronha. Dobradinha dentro de um envelope. Acompanhada de uma carta cheia de carinhos e conselhos. Estes últimos, impossíveis de serem seguidos, naquela faixa da vida. Aliás, até hoje, confesso.

Em exageros de afeto, a distinta senhora aplicou, num canto do envelope, a sigla mágica “S. A. t. g.”. Ou seja, “Santo Antônio te guie”, pois naqueles tempos os correios eram erráticos e imponderáveis. Daí a necessidade de se apelar ao santo para que as cartas chegassem direitinho ao seu destino. Hoje fico pensando como o coitado do taumaturgo, mergulhado dia e noite em cavilosas e perigosíssimas conspirações casamenteiras, conseguia tempo para bancar o carteiro...
“S. A. t. g.” na quina do envelope, a santa avozinha o sobrescritou assim:
- “Ao interessante jovem” – ...e, no restante, meu nome e o endereço. Vocês não imaginam quantos anos levei para limpar da minha ficha o apelido de “Interessante”.
Uma batalha infrutífera até hoje. Pelo menos para o Paulo Emílio, um dos sobreviventes da velha república. Onde quer que me encontre, me presenteia com o infame adjetivo.
Uma noite, eu comboiava uma dona de polpudos atributos dianteiros e traseiros num jantar boca livre. Sabem onde? No Automóvel Clube. Nem bem adentramos o esnobe salão, o Paulo Emílio, já com dose industrial de uísque no copo, fuzilou:

- Oi, Interessante... Tudo em cima?

A dona destilou um sorriso maquiavélico, cubou-me de alto a baixo e bombardeou-me de ironias:
- Pois não é que você é interessante mesmo?
Ah, Mãe Naná!

quarta-feira, 22 de abril de 2009

ATÉ QUE PONTO O OUTRO É A SUA PLATÉIA?


NÃO SEI SER RÓTULO, afirma Fernanda Gomes, que plantou seus olhos e sonhos sobre a Praça da Estação e mudou a rotina do povo que passa pelo centro de Belô.

De 23 de abril a 3 de maio, ela expõe o que rolou nessa instalação interativa.

Museu de Artes e Ofícios
Praça Rui Barbosa (a da estação!)
CENTRO


quinta-feira, 16 de abril de 2009

Porto de Quelimane - Moçambique



Do porto espero o aproximar de cada navio
Cada nau a vela turbinas
Mastros ao vento na brisa desse outro outono

O torpor aumenta a cada constatação
Não chegaste
Procuro-te junto à amurada
Mas nesse outro outono
Nada
Lembro-me da partida
Anseio pela chegada

Já disseram que cada partida é uma morte
Morrer no mar
Ao sol ao sal ventos do índico
Guia-nos em direção a história
De guerras de mundos longínquos
De homens deuses resolutos em tua ignorância

De gerir teus compatriotas
Subordinando nações inteiras
A resoluções ambíguas
Mutilações do raciocínio lógico
Dos valores dignos por vícios de poder

Navios por tempos tornam-se casas
Lares da tripulação dos homens do mar
Comandantes trapaceiros jogadores damas
De saias de copas cozinhas salões

A áspera angústia
Tênue linha entre a saudade e a renúncia
A sombra das palmeiras que dividem

Os muros do porto e as águas do mar.


Texto: Pablo Casarino.
Imagem: Waiting for breakfest - Tate Hamilton.
Imagem 2: Pablo Casarino.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

POUSO BENTO


Andamos cerca de dois dias para chegar lá. Valeu cada passo, digo de antemão. Ali, sozinha, Dona Ana Benta cuida de uma égua, duas vacas, dois bezerros, várias galinhas e de uma horta que dá gosto. Seu vizinho mais perto está a 10 quilômetros de espaço ermo, maravilhoso, entre vales e montanhas que circundam um cerrado fértil e abundante. Da solidão, ela tira força para vencer os dias, as noites, e a sedução de um mundo moderno. Dona Ana Benta não quer TV, ignora a eletricidade. Para ela, basta o calor de seu fogão a lenha.

De noite, após a janta, conversamos bastante. Falamos do céu de estrelas, do pôr-do-sol, das águas e das montanhas. No alto da serra, ouvimos muitos casos... vários deles de pessoas que viveram experiências com seres de outros planetas. Luzes estranhas, discos, flashes no céu... Para ela, tudo é normal. Sentada no fogão a lenha, Dona Ana Benta olha para a noite e, como se estivesse procurando uma estrela cadente, conta que vê os “aparelhos” todos os dias. “Outro dia, tinha dois brigando lá no alto”, conta, entre gargalhadas, com a certeza do tamanho de sua inocência, do tamanho de sua graça.

Acordamos cedo, com o bom-dia de um belo galo Garnizé. O café já estava pronto. Na mesa, um queijo redondo nos fez salivar. Dona Ana Benta nos rodeava. Andando de lá para cá, ela limpava a mesa, servia mais café, oferecia gostosos biscoitos, e resmungava quando percebia que alguém estava parando de comer. Com um pano de prato bordado nas mãos, ela ziguezagueava por entre nós... “Come mais meu filho, vocês precisam de muita força”, receitava, com ar de vó benta.

Tivemos que seguir viagem. Me voltei para Dona Ana e ela abriu os braços. Abraçados, ela me disse que sua vida se resumia em cuidar do seu lar e de fazer mais amigos. “Que bom, meu filho, que agora você é meu amigo”. Forcei meus braços mais um pouco e falei comigo mesmo. “Que bom, Dona Ana, que você existe no mundo”.





Texto: Bruno Sales.
Imagem 1: autor desconhecido.
Imagem 2: Bruno Sales.

quarta-feira, 1 de abril de 2009


Vida abençoada
Infinitas oportunidades
Vibrante conquista
Esperança amiga
Rompendo barreiras

Inigualável prazer
Nenhuma certeza por vir
Tudo por explorar
Entusiasmo de criança
Nada de fantasias
Sem preconceitos
Amor não pode faltar
Memórias valem ouro
Empenho positivo
Nunca desistir
Ter sempre um objetivo
Encarar, suar, e por fim, se deliciar!

Texto: Leo Deoti.
Imagem: Sator Arepo.

sexta-feira, 27 de março de 2009

Poesia no centrão

Trabalho no centro da cidade.
No centrão.
Fauna e flora riquíssimas.
Todo o povão. Sempre no seu melhor momento.
Ontem mesmo, por exemplo.
Saí pra lanchar.
Lanchonete cheia.
Só três mesinhas de dois lugares.
Cheias também.
Numa delas, uma moça. Só.
Bonita dum jeito, digamos, constitucional.
Cabelo num rabo-de-cavalo convenientemente oscilante.
Dois brincos dourados. Grandes. Exageradamente femininos.
Uma blusa branca. Leve. Fingindo transparências. Escondendo.
Ou melhor, revelando dois seios decentemente trêmulos.
A saia e os sapatos, não vi. Completando a vista parcial aérea, um
copo de vidro sobre a mesinha. Com um dedo de um líquido amarelo.
Com a minha imensa capacidade dedutiva, aperfeiçoada com a
Agatha Christie, cheguei à conclusão que a garota tinha tomado um
suco, refrigerante ou beberagem ligados à família da laranja.
A moça contemplava, cítrica, um canudinho vermelho.
Com o qual - outra detetivesca e sábia dedução - sorvera a bebida,
cujo restinho estava no fundo do copo.
Mas a menina tinha um jeito triste.
Muito triste.
Fiquei comovido assim, de graça.
Cavalheiro e charmoso, cheguei junto. Num gesto ousado, sentei-me.
Fui à luta:
- Fiquei te olhando ali do balcão. Achei bonito esse jeito seu de ficar
admirando o canudinho. Mas também achei um tanto triste. Pelo que
estou vendo, você vai chorar, não vai?
A moça esticou o canudinho, encarou-me firme e deu os trâmites por
findos:
- Sabe, moço, estava eu aqui na minha. Conversando com o
canudinho e vem o senhor cortar meu papo? Quer saber de uma
coisa?
Não tive tempo de responder.
Me entregou o canudinho num gesto irado e encerrou o momento de
poesia:
- Enfia esse canudinho no seu cu, intrometido.
Saiu da lanchonete rebolando constitucionalmente, sumindo na tarde
de quarta-feira.
E eu ali, no meio da lanchonete, com o canudinho na mão.
Obedeço a moça?
Imagem: Marcos Antônio.

terça-feira, 24 de março de 2009

GOD IS CREEP

Quem me apresentou o disco “Ok Computer”, do Radiohead, foi um ex-namorado, há nove anos. Amor a primeira ouvida. Desde então, esperava ansiosamente um show da banda pelas bandas de cá. Depois de muitos boatos e anos de espera, enfim, fomos atendidos.

Foi o melhor show da minha vida, embora não me sinta capaz de traduzir a experiência. Tentarei fazê-lo, entretanto, por insistência do amigo-poeta e editor deste blogue.

Li vários artigos a respeito das apresentações no Rio e em São Paulo. As críticas exaltavam os mesmos pontos - a qualidade técnica dos músicos, multi-instrumentistas, e o extraordinário efeito visual do palco, com tantos tubos de luzes em cores vibrantes. Mas, o que realmente impressionou os jornalistas foi o público. Sim senhores, apesar das indiscutíveis qualidades do Radiohead, nós ajudamos a fazer estes shows serem inesquecíveis.


Cantamos em peso com Thom Yorke e era nítida a alegria dos músicos no palco. “No Surprises”, “Karma Police” (o coro junto com Thom no refrão “this is what you get!”), “Paranoid Android” (todas estas do Ok Computer), além de “Idioteque” (Kid A), “Reckoner” (In Rainbows), “You and Whose Army?” (do disco Amnesiac, executada numa performance emocionante com uma pequena câmera em cima do piano que mostrava no telão em P&B apenas os olhos do cantor), e o grand finale “Creep”, foram músicas áureas do show, onde os espectadores emprestaram suas vozes e o resultado foi de chorar! E eu chorei.


Já fui a diversos shows importantes e admiráveis – Iggy Pop, Patty Smith, Sonic Youth, Stones, Beastie Boys, Yann Tiersen, entre os internacionais. Além de Chico Buarque, Toquinho, Caetano, Paulinho da Viola, mas nenhum deles me fez chorar. E também gargalhar e cantar, dançar, tocar guitarra invisível, agradecer a deus, clamar o diabo. Tudo isso misturado, em pouco mais de duas horas. Não tinha vivido nada parecido.

Ao final e depois de todas essas sensações arrebatadoras, queria fazer jus ao meu apelido, Pennylane. Eu merecia ser groupeira naquela noite! Liguei para uma amiga que trabalhava na produção do evento e pedi que me ajudasse a entrar no camarim. Encontramos-nos, mas ela não pôde me levar, o acesso era muito restrito e as pessoas não nos deixam esquecer que eles são super pop stars. Um rapaz chegou perto de nós e implorou para minha amiga - que tinha uma credencial pendurada no pescoço – para colocá-lo em contato com a banda. Mas ela explicou: “Eu não posso. Veja só a minha amiga. É a maior fã e eu não consigo nem pra ela”. O menino, que estava com um pôster enrolado nas mãos, provavelmente para ser autografado, fez cara de apelo e ressaltou: “Pelo-amor-de-deus, eu vim lá do Amapá!”

Eu quase abracei o tal desconhecido, como fazem os torcedores de futebol ao presenciarem o gol do time do coração. É incrível compartilhar com milhares de pessoas a mesma emoção. Mais incrível ainda, é fazer milhares de pessoas se emocionarem.

Eu não queria autógrafo, nem fotos com o Radiohead. Eu queria mesmo era dizer “you`re so fucking special”.

Texto: Marcella Jacques
Março de 2009.
Imagem 1: Autor desconhecido.
Imagem 2: Estadão.
Imagem 3: Autor desconhecido.

sexta-feira, 20 de março de 2009

OBRA


tenho a noite para construir
com minhas ferramentas vis:
cigarro, álcool, e minha roupa caída

o som, da obra, me tira o tino
e me faz não querer o sol
logo após a escada urbana

sou mais um no sfumato cinzento
e quero mais que o prazer viril
quero ter punhos, tijolo, cimento

e cumprir a meta soturna:
outro amor, outra mentira e a certeza
de uma noite com começo e um quase-fim

segunda-feira, 16 de março de 2009

De olho o gato diz


De súbito o gato passou
E miou um miado mudo com o olhar
Um olhar minguado e mais um miado cru
O olho de quem com o miado diz

Diz e desdiz contradiz
Diz de olho e com desdém
Diz algo de triste
Diz algo de alguém
Texto e imagem: Pablo Casarino.

quarta-feira, 11 de março de 2009

Para quem gosta do silêncio


Minha boca sussurrou
meu amor ao seu ouvido.
Como resposta ouviu-se apenas
o silêncio.
E agora essa ausência permanece
congelada.

Enquanto isso você derrete suas lágrimas
por quem atirou o seu amor ao mar.




Imagem: Autor desconhecido.

segunda-feira, 9 de março de 2009

Mesmo sabendo que todos os dias são da mulher e que ainda há muito mais para ser conquistado, o Projeto Eutanásia publica um soneto de Bruno Grossi às mulheres.

Vale a pena ler o texto "Dispenso esta Rosa!", que a Rebecca publicou em seu blogue "Umas e Outras", de Marjorie Rodrigues. Clique aqui.

quinta-feira, 5 de março de 2009



A agenda de compromissos deitada. É ela a companhia da mulher solitária. Da mulher solitária que passa. Que passa rápida pelo tempo e mal dá conta. Suspira e vem a falta. Da palavra, da poesia que já houve, do ouvido, órgão cansado de tantos falsos lirismos. É carnaval e a mulher sabe que vai morrer. E ainda assim mantém a agenda de compromissos com marcações multicoloridas até o final do ano. Até o próximo Carnaval. Confete de compromissos que ela sabe que não vai cumprir. Mas a dor de não tê-los organizados na agenda de compromissos é maior. E toda noite é assim. A agenda de compromissos deitada ao lado da mulher solitária. No carnaval, uma marchinha ao fundo. De resto, o mesmo de sempre, a mesma mulher, a mesma agenda e os mesmos compromissos, ainda que só rabiscados no corpo da agenda de compromissos silenciosa da mulher solitária que sabe que vai morrer.
Texto: Val Prochnow.
Imagem: Edward Hopper.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009


As pessoas são carentes de utopias, de deuses, de sonhos, de certezas...
e deve ser por isso que é tão difícil... difícil me relacionar com elas...

eu não tenho nada a oferecer senão "talvezes", minhas próprias dúvidas e incertezas...

Eu não poderia iludir ninguém se, antes, não estivesse iludindo a mim mesma...


Imagem: Banksy.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

O AMOR NOS TEMPOS DA OBRA

Fecho os olhos, respiro fundo e, antes que a noite termine, desço a escadaria da Obra para umas saideiras. Nas pickups, ritmos clássicos de funk, soul e rock embalam os que resistem na boemia. Nessa hora, a sexta-feira 13 de lua cheia já se transformou em sábado 14. E o relógio tenta, vez ou outra, anunciar o sol, que não tarda. Mas, não tão longe daqui, debaixo desta terra, aonde não chegam nunca, os seres diurnos dormem seus sonos de pedra, sonham castelos de areia, almejam os sóis das manhãs. E nós, sem notícia concreta do dia, continuamos eternamente em obra, dançando, bebendo e flertando.

Entre uma cerveja e outra, eis que, de repente, diante dos meus olhos e da embriaguez dos desejos, surge de blusa verde e sorriso farto a mulher mais suave que se tem notícia. Com a súbita aparição, perco o foco de todas as outras coisas noturnas e me atento apenas em seus sorrisos e movimentos.

Com humildade e assombro, balbucio algumas palavras sem tantas esperanças. Embaixo do ventilador, sob a brisa mecânica que promove encontros inusitados, eu a percebo lindamente miúda, derramando simpatia sem esforço. Assim como eu, a bela tenta se refrescar no bom inferno dançante.


Entre várias palavras e alguns afagos, fico sabendo sua procedência. A doce ninfa que flana na madrugada insone mora no bairro Prado. Porém, anunciando sua precoce partida, me diz que precisa descansar para retomar seus estudos na manhã de sábado. Tento, inutilmente, antes de acompanhá-la à porta, arrumar seus cabelos que pendem sobre os olhos. Mas, em um movimento desajeitado, volto a colocá-los sobre sua vista, ganhando mais um sorriso lindo e inesperado.

De leves e despretensiosos carinhos a alguns chamegos que precedem o beijo, me despeço sem que meus lábios toquem os seus, deixando-a em um táxi pálido no fim da noite. Sua ausência se torna adorável e, agora, me conduz de volta para casa pelos mais doces caminhos.

Mais tarde, acordo sob os encantos de uma leveza estranha. Mesmo com a ressaca que me envolve, abro os olhos e a primeira coisa que penso é na imagem e na leveza daquela mulher Obra. Senhorita de uma beleza maravilhosamente simples, dela guardo o nome, o telefone e a esperança de outros encontros. Ou devaneios.



sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Amor, amar cura


Aqui pra nós. Ter ou não ter um amor? Eis a questão.

Ao termos, nos sentimos completos. A vida parece mais fácil, tudo ao redor flui e é mais belo. As estações passam a ter mais importância e sempre nos preparamos para vivê-las prontamente. O coração bate mais suave, a pele brilha, os traços faciais ficam leves e toda canção tem um “quê” a mais. As cores se fortalecem, os aromas se intensificam e o ar fica mais puro. Planos, sonhos, tudo parece tão real. Carícias, dedicação, risos, abraços, beijos, pernas entremeadas... Nossa, quanto suor! Lábios com lábios, olhos fechados em sintonia, quanta harmonia. O mundo pode acabar que nada irá mudar isso.

E como é lindo conviver. Há de superar as dificuldades e aceitar os defeitos. Nas horas boas então, nem se fale. É perfeito! Mas não adianta ter um amor e não se entregar também. É preciso se derramar aos pés da pessoa amada, demonstrar o quanto a ama, fazê-la se sentir única. Isso ajuda a cicatrizar as marcas do passado, sem extingui-las. Bom para o crescimento e melhor ainda para o equilíbrio pessoal. Como é lindo poder usufruir dessa verdade, de forma digna, leal e respeitosa. A verdade de amar um só amor, dois em um, um pelo o outro, lado a lado, para sempre até quando durar.

E quando não o temos mais? O mundo desaba e tudo fica obscuro. Perdemos o chão, o sentido da vida, o rumo. Estáticos, sem reação, pasmem na solidão. Uma dor insuportável. Não se respira, não se concentra, sofre-se de insônia, não se sai da cama de tanto desânimo. Tudo ao redor perde o sentido. Como se perdêssemos nossas pernas e ficássemos impossibilitados de andar. Amputados, decepados, incompletos, imperfeitos. Os sonhos e planos já não fazem mais sentido. Toda a harmonia se esvai pelo ar. O tempo leva o amor embora para que um processo de cura se inicie.
E como recomeçar? Nova vida, novos objetivos, novas alianças, novos belos horizontes. Afinal de contas, a vida nos proporciona inúmeras possibilidades, e não podemos desperdiçar esse presente dos deuses. É preciso achar a beleza novamente.

Mas, ter? Nunca teremos. O sentimento de amor cada um sempre terá o seu, mas a pessoa amada nunca será sua. Ela estará ao nosso lado por simples e espontânea vontade. O Livre Arbítrio existe justamente para vivenciar e dedicar, até quando durar essa verdade. O amor é franco, sem muitas complicações. E quando amamos, é preciso libertar o nosso amor. Para que ele decida ir e vir, e de preferência, claro, ficar.
E o que nos resta é crer e esperar. E no mais, estar pronto, para sempre amar.


Texto: Leo Deoti.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009


a brisa bateu e eu
da sombra na areia caminhei para o mar
e entrei com vontade
quando já não dava mais pé respirei
respirei profundamente e mergulhei
mergulhei humanamente e consegui
por um instante
não pensar em nada

pois era

ele e o mar
o sal e o sol
a pele branca e os lábios avermelhados
o corpo ardia e ele sorria
enquanto o mar nos abraçava
Imagem: Hayley Butler.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009


Da alma
vem a música para ser sentida.
A magia deixa o rastro.
Solta cores, solta risos.
Na sombra da noite,
vivem a saltar e cantarolar.
Com a dança brilha a lua,
vibra a vida, sorri as flores.
Sons psicodélicos
buscam anárquicos ouvidos.
Texto: Diane Mazzoni.
Imagem: Bruno Grossi.

domingo, 18 de janeiro de 2009


Leitoras e leitores do Projeto Eutanásia,

Hoje, domingo, dia 18 de janeiro, comemoramos dois anos desta página negra bordada de lirismo e devaneios. Quando o projeto começou, éramos apenas dois. E, agora, dois anos passados, a família Eutanásia não pára de crescer. Somos 23 cúmplices com a deliciosa missão de derramar palavras, juntando sonhos e ilusões, compartilhando encantos e emoções.

Agradecemos a todos que por essas paragens pousaram os olhos, nem que por módicos cinco minutos.

A vida urge poesia, o Projeto Eutanásia grita pela vida.

Vida longa ao Projeto Eutanásia!

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

O sol reflete e nossos olhos saboreiam belas cores.
A música é linda e triste como fim do outono

quando se está só.
A roldana avança e quem dança são os pais do pequeno Vinícius,

que canta em forma de oração:


a chuva cai tão de repente molha todo o meu colchão
nessa casa sem parede vida de dormir no chão
criança nasce entre serpente o sol pra ela lá não está
desde pequena já aprende mesmo fraca tem de lutar
cai sem me machucar cai sem me machucar.


contra sabores amargos
mais cores, realmente mais, simplesmente cores
contra danças chuvosas
algum ofício
contra o inverno a chegar

alguém.


Texto e fotografia 1: Lício Daf.
Fotografia 2: Daniel Rubens Prado.

Imagem: Artista desconhecido - grafite no muro próximo à FUMEC.