Para ver a fúria com que o povo se atira às compras.
Até os tarados não mais dizem vou às mulheres.Monocórdios e repetitivos, em estado de nítida ereção
consumitória, anunciam: vou às compras.O trânsito, se visto lá de cima, obrigaria Jeová
a repensar à criação do mundo.
Ou seja, em matéria de caos, o nosso trânsito
dá de dez a zero naquele que precedeu a criação do paraíso
e o momento proibido e gostoso que Adão e Eva viveram.
Quanto ao gostoso, nem digo tanto. Os dois, certamente,
pecaram pela inexperiência.
O verbo pecar, ai, por favor, arrume a semântica direitinho,
para saber onde quero chegar.
E chegar é o mais difícil nestes dias turbulentos.
Mineiro, que já carrega o estigma de chamar a gente
e ir andando, neste dezembro bate todos os recordes de impontualidade.
Encontros, não os marque.
Mesmo aquele por que se esperou meses. Ou anos.
Você, se reaparecesse de repente nesta galopante cidade,
jamais me veria chegar como um Concorde em viagem
inaugural.
Ou como cavalo pampa de vovô Vicente, que arrasou
com um cavalo alazão de Conceição de Mato Dentro, numa
corrida que inventaram em Carmésia, então chamada Viamão,
ali pelos anos 20.
Corria-se, a cavalo, naquele tempo.
Afora o ecológico esterco que produzem, os cavalos não provocavam engarrafamentos.
Nem buzinas. Mal e mal alguns relinchos de satisfação, vez por outra. Então, a vida trotava em poesias.
E tranquilidade.
Foi só virar a esquina da memória e lembrar-me do cavalo
de vovô e nasceu uma súbita paz no ar.
Como aquele moço de Itabira, grande poeta, estou sozinho no quarto.
E sozinhíssimo nas Américas.
Eu, minha máquina de escrever, umas azeitonas que
pesquei na geladeira. E uma bebida num cálice.
Dizer verdade, nem sei qual seja. A bebida.
Pus duas pedras de gelo num copo, enfiei a mão no
barzinho – aquele de vime, você conhece –, peguei o primeiro
litro que achei, abri, fui pondo.
Enchi o copo, até à borda. E vou tomando. E escrevendo.
Nunca menti para você. Assim, confesso que já estou no segundo cálice.
Ou será o terceiro?
Nem me lembro.
À medida em que eu vou batucando a memória e bebendo, vou-me sentindo incomodado. E com um gostinho de frustração.
Porque sinto você por perto.
Claro, você não está.
Não vai haver ruído de campainha tocando.
Nem telefone chamando.
Talvez o interfone do prédio chame.
Mas para dizer que a conta do telefone chegou.
Ou da luz. Da água, não, já vem na taxa do condomínio.
Não consigo ficar sentado.
Chego à janela.
Aqui da Serra vê-se quase toda a cidade.
E as luzes, em forma de árvores, de flores ou do que
seja, explodem pelas encostas, pelas ilhargas dos
edifícios, pelas esteiras de fios espichados nos
vãos das praças.
Das bandas oeste da cidade, vem o ruído pesado do tráfego.
Quase dez da noite.
Os compradores estão voltando para casa.
Não há como desmentir.
É o Natal que está no ar.
Volto da janela. Sento-me. É preciso terminar esta conversa.
Pois que se acaba a crônica.
O que não acaba é essa súbita vontade de continuar bebendo.
E fazer alguma coisa.
Chorar, talvez.