terça-feira, 28 de agosto de 2007

Moça de manhã


A manhã de sábado convidava à irresponsabilidade. Até o sol flanava céu afora. Bem devagar, como se esperasse a hora do almoço. Por isso, brilhava como uma gema de ovo, dourando o mundo.
O andar desajeitado do sol contaminava a moça, que chegou à varandinha que dava para o terreiro. Espichou-se como uma serpente preparando-se para dar o bote. Tombou o pescoço, fechou o olho direito, calculou a mira e o tiro saiu perfeito: acertou o sol. Lá dentro.
Recuou, maravilhada. Cega de tanta luz. O céu, encharcado de azul. O brilho do sol ofuscava algumas nuvens que, pouco antes, se orgulhavam da luminosidade da sua brancura.

- Coitadas - pensou a moça, aconchegada na lindeza de camisola. Tão curta que mais parecia um abajur. A cobrir luzes ou brilhos, sabe-se lá.

- Um dia bonito assim e eu sem nada que fazer – pensou, com a consciência do pleonasmo negativo.

Namoro terminado. Melhor amiga viajando. A mãe na igreja. O irmão na pelada de futebol. O pai no Mercado Municipal – cerveja, bife de fígado acebolado, os amigos.
Solidão.
Ela se bastava.
Só, somente, sozinha.
Esfregou os olhos. Olhou de novo para o sol.
Matutou.
Num gesto brusco, saiu do alpendre.
Voltou logo. Uma tesourinha e um alicate nas mãos. Às unhas!
Sentou-se a uma cadeira, virada para o sol e para as réstias de raios que começavam a desenhar camadas de ouro no chão do alpendre.
A moça ergueu a perna direita. Uma perna em toda a glória de efêmeras penugens e tímidos músculos. Com uma marca de queda no joelho. Lembrança de uma tarde na Serra do Cipó.
Um suspiro espesso, dedicou-se a navegar a bordo e estibordo das unhas do pé direito.
Depois de cinco minutos de bifinhos e ais, trocou de perna.

De sob a cadeira, veio a perna esquerda. Com os mesmos músculos tímidos e as penugens efêmeras. Faltava apenas o sinal do tombo. Nada é perfeito.
O sol passeando lá fora. A moça, do lado de dentro, continuou a perfunctória missão de remexer nas unhas.
Enfim, descansou tesourinha e alicate na mesa comprida. Espanou os estilhaços das unhas com tapinhas de alta delicadeza. Especialmente os que ficaram na barra da camisola.

Levantou-se.
Espreguiçou de novo.
O nada que fazer chegou ao auge.
Pôs a mão no queixo. Mas não refletiu sequer um segundo.
Pelo jeito que saiu do alpendre, tomara uma decisão. Definitiva e inarredável.
Era verdade.
Tomou sim.
Voltou lá de dentro com um violão na mão.
Sentou-se. Botou o pé direito num pufe distraído, que tingia de verde
a frente da cadeira.
Ajeitou um lá maior.
E começou a cantar a música que aprendeu, toda vez que seu pai brigava com a mãe:
- Teu mal / é comentar o passado. / Ninguém precisa saber...
Desafinada de fazer dó. Ou lá maior?


Para Renata H.


Crônica: Melchiades Cherubino

Imagem: Louisiana, por Lora Shelley.
Para mais obras da artista, clique aqui.

2 comentários:

Rebecca M. disse...

Simples, delicado e comovente.

Gostei!

Rebecca M. disse...

Ô gente,

Falar nisso, um blog com tanta gente boa escrevendo, por que vcs não se inscrevem no blogblogs, no technorati, MyBlogLog, etc.?

Vamos aumentar a comunidade de leitores....

Bjos!