domingo, 29 de julho de 2007


Através da janela da van, vejo o Rio de Janeiro. Durante todo o dia, saio em busca de objetos para os cenários de um filme. É emoldurada pela janela que a cidade se apresenta para mim.

Os desníveis do Rio são, ao mesmo tempo, sua força e sua mazela: os desníveis geográficos são a grande característica visual da cidade, que em um desenho de montanhas peculiar, demonstra a soberania da natureza diante da interferência humana. Em contrapartida, os desníveis sociais são tão nítidos e incorporados ao “cartão-postal”, que é impossível também não senti-los nas retinas. Diferente da maioria dos grandes centros urbanos, a pobreza e a desigualdade cariocas estão entranhadas nas zonas mais nobres da cidade. Não somente nas áreas margeadas, suburbanas.

Descemos da van em frente à produtora. Bairro de Botafogo. Ao nos ver, o porteiro Zé diz logo:
- Faz cinco minutos que parou o tiroteio no D. Marta. (pausa) Fuzil!

Um colega nosso de trabalho tomou três tiros no braço, há dois meses. Enquanto ia buscar a filha na escola. Uma das balas ainda permanece no braço. Não pode ser retirada sem estilhaçar o músculo. Ele agradece por estar vivo, e mais – pelo braço atingido ter sido o esquerdo! Pôde continuar trabalhando.

Continuamos. Todos nós.

No dia seguinte, parto de Laranjeiras, bairro onde moro. Vou levar um tecido à costureira Aldeíde, na comunidade do Rio das Pedras, bem depois da Barra da Tijuca. Lá, o esgoto é a céu aberto. O odor é ainda mais forte que o sol que ferve nossas cabeças. 35 graus.

Depois, a van nos leva para o sentido oposto. Alto Gávea. Precisávamos pegar alguns móveis do próprio diretor para um cenário. Ao chegar ao espaçoso casarão de três andares, os ajudantes ficaram aliviados. Não tiveram tanto trabalho – a casa possui elevador. Da sacada do imóvel, a vista para a Rocinha não nos deixa esquecer tamanha desproporção.

Voltamos pela Lagoa. É fim de tarde. A luz do sol já está mais suave. Reflete nas águas e intensifica o azul. Ciclistas transitam mansos, como se não soubessem dos problemas além dos obstáculos da pista.

Desníveis, devem pensar. Apenas.
Texto e imagem: Marcella Jacques
Julho de 2007
“Purgatório da beleza e do caos”

3 comentários:

Anônimo disse...

Pennyzinha,

coisa mais linda a sua cronicazinha e a fotografia. Não imagina a minha felicidade ao vê-la estreando no Eutanásia. Vida longa ao seu lirismo.

Beijos,

Cabeça.

Anônimo disse...

Que linda la redaccion, me gusto mucho el manejo de los tiempos y las pausas...sos una poeta lírica y sencible. Espero que sigas escribiendo muchas cosas de tu vida cotidiana, que ahi, en las pequeñas cosas, está la grandeza de la vida...

Muchos muchos besos,

Federico.

Unknown disse...

Marcella,
Estou encantada! Seu texto é leve, sútil e ao mesmo tempo muito sensível.Gostoso de ler. Tiro certeiro!
Vou pensar nos desníveis...
Izabela.