quinta-feira, 28 de maio de 2009

Capeirote


“As crianças não têm passado, nem futuro,
e coisa que nunca nos acontece,
gozam o presente”.

Jean de La Bruyère
Quando criança, passava boa parte do tempo na Terra do Nunca. O sobrado de dois andares, branco encardido e com uma fachada capaz de fazer qualquer arquiteto rasgar o diploma, era muito mais que um lar. Os muros chapiscados, que dividiam meu espaço com o dos vizinhos, se impunham como imensas barreiras a serem transpostas, pedindo "por favor" para que alguém as escalasse. Foi uma infância nos ares, subindo, descendo e andando sobre muros e mais muros, com uma destreza e um equilíbrio que só poderiam ser explicados caso meus pais fossem trapezistas ou algo do gênero.

A vida seguia. E eu seguia sobre os muros. Vez ou outra me arriscava e invadia um novo território. Descia em quintais alheios e o coração infantil, influenciado por uma mente fantasiosa, fazia com que meu corpo crispasse. Naquela época não sabia o significado da palavra adrenalina, mas, se soubesse, conseguiria definir a sensação de tocar pela primeira vez em um solo nunca antes explorado. Ser criança é assim: enxerga o mágico onde os adultos só vislumbram o óbvio.

Nós, crianças, apesar dos meus 87 anos, somos capazes de transformar as incursões no quintal do vizinho em uma aventura inenarrável. Subvertemos a realidade em benefício de um prazer inocente, pueril. Vivemos iguais aos manuais de auto-ajuda, dia após dia, saboreando cada momento como se fosse único.

A cada fruta roubada (criança não furta, rouba) das centenas, milhares de árvores que cresciam e floresciam nos quintais vizinhos, eu jogava a realidade por terra, fazendo com que ela perdesse sua força, sua vocação para a chatice, para a falta de graça. Nessas horas, com o bolso da bermuda recheado de frutas, me sentia um usurpador, pronto para conquistar novos mundos e levar comigo o bem mais precioso de cada recanto - na maioria dos casos, uma carambola, uma manga e, quando não dava sorte, alguns limões enrugados.

A infância seguia. E eu seguia sobre os muros. Hoje, aos 87 anos, voltei a pensar e agir como uma criança. Não escalo mais muros devido a uma osteoporose que me pegou de repente. Mas continuo roubando algumas frutas nas gôndolas dos hipermercados só para sentir novamente aquela adrenalina de outrora. Só para lembrar que um dia fui menino, fui moleque, fui criança. Para jamais esquecer que, no dia em que meus pés tocaram pela primeira vez o solo do quintal de um vizinho chamado Antônio, a minha vida ganhou um novo colorido. À sombra de uma imensa goiabeira, um casal de adolescentes se abraçava e se beijava com uma volúpia e uma beleza suficientemente fortes para deixar as goiabas vermelhas por dentro e também por fora. Foi nessa hora que a minha infância começou a flertar com o mundo adulto. E foi exatamente nessa hora que tive vontade de pegar meu capeirote e sair dali voando igual aos super-heróis da Marvel. Ainda era muito cedo para deixar de ser criança.
Texto: Guilherme Carvalho.

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