Eu sou aquela que escreve para ti, vivente do futuro. Aquela que, por uma bobagem que escrevi ou uma rima dedilhada, te fiz sonhar comigo. Andastes os cantões do mundo para me encontrar. E, agora, que me tens tombada, ficas aí, de quatro, a me contemplar. Comes poeira; acaricias vermículos, e não te cansas? Não te cansas de bulir pecinhas duras de fosfatos e chamá-las de história?
Não deixarei que encontres um mísero tecidozinho meu. Tenho medo que me exponhas àqueles que não me vêem; não me compreendem, tampouco conhecem a cadência do meu pensar. Desejas levar-me a velejar? Estou aqui, embaixo do teu pé direito. Queres me apresentar os continentes que, por parcimônia, jamais conheci? Estou aqui, ao lado do teu cotovelo. Mas, se queres apenas ajuizar de mim, escondo-me nas reviravoltas das ravinas. Nunca irás me encontrar.
Se me tens tanta adoração, deixa-me aqui. Se quiseres, visita-me! Eu te receberei. Por precaução, pois tu me calejaste de medo, grita seu nome antes de adentrar na minha tumba. Caso contrário, acreditando seres outro engenho a me apoquentar, lançar-te-ei sopros ígneos para queimar-te a face, sem querer...
Interes-te de mim, ao invés de despojar-me. Não tenhas medo de me encontrar num mau momento... Examina-me! Mas, não me roubes deste chão. Levei séculos para encontrá-lo. Não me leves a morar nos museus envidraçados; em vida, nunca toquei os pés no templo das Musas.
Ama-me assim – livre, pó – em comunhão com a terra.
Deixar-te-ei os meus escritos, os meus rascunhos, a minha arte. Pensas que é pouco? São fragmentos do sangue, do ritmo, do sopro que me manteve erguida... ah... há quase um século! Se pensas que é pouco o que te dou, contar-te-ei um segredo: as prosas com as quais te deleitas, chorei-as. As poesias que te enternecem, rasgaram-me a carne. E os cantos inacabados que guardas como um tesouro?! Nesses, harmonizei todas as contendas.
Quando sangrava de desilusão, escrevia em vermelho. Quando acreditava nas promessas de futuro, escrevia em verde. Sabes por que estou a escrever-te de azul? Libertei a minha alma desse corpo; esse que insistes, novamente, em aprisionar.
A herança que deixei, diz mais de mim do que esses velhos destroços. Bravia, escrevia com forte caligrafia. Plena, comia biscoitos em meio ao pensar. Agora, se encontrardes uma mancha de café nos originais que guardas com tanto fervor... Saibas que estava, justamente, a escrever-te.