quinta-feira, 28 de junho de 2007

Papos amenos

9106. Esse é o ônibus que pego todos os dias pela manhã para ir à labuta. O vento frio que, nessa época do ano desce pelas encostas do Aglomerado da Serra, bate na minha cara sôfrega e cheia de sono. Acendo um cigarro que, atrasado como eu, não chega ao final.

- Basta acender um cigarro que o ônibus chega – diz uma senhora de sorriso macio, que espera o outro ônibus, que vai para o centro da cidade.
Retribuo o sorriso, não tão macio quanto, e entro no lotação, ainda vazio. O primeiro “bom dia” vem de uma motorista morena, de óculos escuros e movimentos de piloto de fórmula truck. Pago a passagem com uma nota canastra de dois reais e procuro um assento. Vou observando, com volúpia, a rotina das pessoas. Não antes de admirar a beleza de uma mulata sentada em um dos últimos lugares do ônibus.
No meio do caminho, em um ponto da Rua Pium-í, costumo encontrar meu tio, o Djalma. Conversas amenas vão até a Praça da Liberdade. Ali, salto no ponto em frente ao Palácio do Governo.
Hoje aconteceu diferente. Tio Pradinho, como Djalma é conhecido, não passou pela roleta. Geminiano do fim de maio, meu tio completou 65 anos de idade dia 30 e agora não mais precisa gastar dinheiro com passagens. Cumprimentamo-nos por cima da roleta e ele se assentou na parte da frente. Entre eu e ele, um vidro, onde fica o jornal mural do ônibus. O que, junto ao barulho do 9106, dificultou bastante o nosso papo. Foi como naqueles filmes policiais, onde o advogado conversa com o bandido, olhando apenas através de um vidro e usando um telefone preto. No nosso caso, só faltou o telefone.
No auge de seus 65 anos, andando de ônibus de graça, Tio Pradinho me deleita com os casos da velha São Miguel y Almas de Guanhães. Cidade onde cresceram, lá pelas paragens da Rua do Pito, os irmãos Djalma, Ildeu, Lelinho, Silvio, Mara e o interessante jovem Márcio Rubens Prado. Pois, assim, era chamado meu pai, por Mãe Naná, sua doce avó, ao enviar-lhe cartas nos anos idos. Franzino e sonhador, papai um dia veio para a cidade grande, que nem era tão grande assim. Queria, entre tantas coisas, ser homem feito. E, quem sabe, escritor.






Daniel Rubens Prado,
Inverno de 2007.
Clima quente e seco, como previu a moça bonita do tempo.

terça-feira, 26 de junho de 2007

A garota do ônibus


Segunda-feira carregada de náuseas. Aquelas cervejas e pingas, com meia-dúzia de frangos a passarinho no estômago, garantiram mais uma segundinha daquelas. Além de assistir meu time perder, perdi o chorinho de domingo e preferi sonhar com finais de semana melhores.
Apenas 20 minutos atrasado, cheguei ao serviço pouco disposto. Passei o dia resolvendo pequenas pendências, sem dispensar o mal-estar. Ao meio-dia, estava de prontidão para bater meu ponto e ir correndo em direção ao outro ponto, o de ônibus. Lento, esperei 15 minutos cravados pelo 9106. Quando ele chegou, procurei um assento ventilado. Nada melhor que um ventinho gelado, para dar sensação de cura. Na minha frente, de moletom rosa, uma garota de cabelos repicados e jeitinho moleque. Ainda não havia reparado seu rosto, mas já o imaginava de uma beleza de doer.
Durante o percurso, prestei bastante atenção em seus movimentos. As mãos iam constantemente à cabeça, mostrando-se preocupada com algo. Eram mãos finas, de uma delicadeza ímpar. Parecia que ainda guardava algum sonho de menina. Volta e meia, virava para ver o mundo lá fora e conseguia vê-la de perfil. "Que beleza de garota", pensei, sem muito alarde.
Depois que já havia decorado quase toda a ternura de seus movimentos, comecei a pensar em que ponto ela desceria. O primeiro que me veio à cabeça, foi um ponto no Sion, onde já vi descer algumas das garotas mais interessantes desse meu Belo Horizonte. Mas o ônibus passou e ela sequer mexeu. Outras duas hipóteses foram os pontos que ficam na Praça Alaska e na Avenida dos Bandeirantes. Entre os dois, que ela não desceu, notei uma semelhança dela com A Garota da Ponte, protagonista do filme homônimo, vivida pela atriz Vanessa Paradis, que assisti há alguns anos, e me apaixonei. (Pelo filme de Patrice Leconte, também conhecido como A Mulher e o Atirador de Facas e pela garota da ponte, que na vida real é casada com o ator Johnny Depp).
Inquietação. A garota do ônibus não parou de mexer com as mãos. Brincava com os dedos, mexia no cabelo e, em um desses movimentos, exibiu toda a nudez de sua nuca. Essa sim devia ser uma das novas sete maravilhas do mundo, assim como o Redentor, com todo respeito ao maravilhoso Estado da Guanabara.
Por um instante, pensei que ela desceria no mesmo ponto que eu. Por um momento, pensei em dizer para ela sobre sua semelhança com A Garota da Ponte. Se não houvesse assistido ao filme, pelo menos a instigaria a fazê-lo. Mas, um ponto antes do meu, já no charme do bairro Serra, ela dá sinal. Sem olhar para este humilde escriba, desce do ônibus, coloca seu cachecol azul e sai andando. Deus sabe lá para onde. Quem sabe para a ponte?

Daniel Rubens Prado,
Inverno de 2007.
Cheira inverno, mas não faz tanto frio.



A atriz francesa Vanessa Paradis, protagonista do filme A Garota da Ponte. Com essa carinha, no telhado... Ai, ai...

terça-feira, 19 de junho de 2007

Amor, liberto amor


Amor pede,
Não exige nada.
Amor transcende,
Você, desassossegada.

Amor alegre? Triste?
Amor sem rótulos ou etiquetas.
Amor suave ou visceral.
Amor assim, amor, não faz mal.

Amor que invade amor,
Amor sem terra, que foge,
Mesmo querendo ficar.
Amor só quer amar.

Amor com unhas e dentes,
Amor sem medo de amor.
Amor e nossas carências.

No escuro, no claro.
Amor dado, não cobrado.

Amor, liberto amor.

Daniel Rubens Prado,
Outono de 2007.
"Amar se aprende amando".
Imagem: Lonely Heart,
By Tara Mc Pherson.

quinta-feira, 14 de junho de 2007


Sem tempo para escrever, com o computador pessoal estragado e na ausência dos outros colaboradores do Eutanásia, "Vai Carlos, não ser gauche na vida"...


Do livro póstumo "O Amor Natural"...



Sob o chuveiro amar


Sob o chuveiro amar, sabão e beijos,
ou na banheira amar, de água vestidos,
amor escorregante, foge, prende-se,
torna a fugir, água nos olhos, bocas,
dança, navegação, mergulho, chuva,
essa espuma nos ventres, a brancura
triangular do sexo -- é água, esperma,
é amor se esvaindo, ou nos tornamos fontes?



Carlos Drummond de Andrade



Imagem: Water of Life, Nectar of Spirit, Bliss of Being Açive.

By Joe Mullally.

quarta-feira, 13 de junho de 2007



Pelo dia dos namorados, embora eu não acredite em dias como esse... mas vá lá. Vale a pena pela poesia do Leminski.






A LUA NO CINEMA




A lua foi ao cinema, passava um filme engraçado,

a história de uma estrela que não tinha namorado.

Não tinha porque era apenas uma estrela bem pequena,

dessas que, quando apagam, ninguém vai dizer, que pena!

Era uma estrela sozinha, ninguém olhava pra ela,

e toda a luz que ela tinha cabia numa janela.

A lua ficou tão triste com aquela história de amor

que até hoje a lua insiste:

— Amanheça, por favor!




(Leminski)



Imagem: Stefan Stenudd.

quarta-feira, 6 de junho de 2007


Lençol branco


Manias. Tinha muitas.
Cidinha acordava cedo, escovava os dentes e religiosamente, com o hálito fresco, voltava para cama sem frescura. Toda jeitosa, beijava-me debaixo do lençol branco.
- Bom dia, meu amor – dizia com um sorrisinho meio de lado.
Saía de casa sorrindo. Trabalhava feito burro de carga e não desanimava. Quando chegava em casa, lá estava ela. Pronta, sedutora como sempre.
O frango na mesa. Quando não vinha com a ave, um bife de boi temperado e um arroz piemontês. A cerveja gelada. Dava um gole e me passava a garrafa. Enquanto bebia, se roçava em mim. Não dava trégua. Nem eu queria.
Cerveja de lado. Trepávamos ali mesmo. Corpo exaurido. Fome repentina. Comíamos e depois fumávamos, escornados nas almofadas da sala de estar.
Sonolentos, em direção do quarto. Não tinha tempo para mais nada. Leituras, televisão. Nem mesmo o programa de futebol no rádio.
Dormíamos. Eu para um lado. Ela para o outro.
De manhã, sob o mesmo lençol branco, ela me acordava.
E com a boca me comovia.
Mania. Tinha muitas.



Daniel Rubens Prado,
Outono de 2007.

Imagem: Residue.
By Rosemarie Chiarlone

terça-feira, 5 de junho de 2007

Chico Buarque e Francis Hime para o Dia Mundial do Meio Ambiente...


Passaredo


Composição: Francis Hime e Chico Buarque


Ei, pintassilgo
Oi, pintaroxo
Melro, uirapuru
Ai, chega-e-vira
Engole-vento
Saíra, inhambu
Foge asa-branca
Vai, patativa
Tordo, tuju, tuim
Xô, tié-sangue
Xô, tié-fogo
Xô, rouxinol sem fim
Some, coleiro
Anda, trigueiro
Te esconde colibri
Voa, macuco
Voa, viúva
Utiariti
Bico calado

Toma cuidado
Que o homem vem aí
O homem vem aí
O homem vem aí

Ei, quero-quero
Oi, tico-tico
Anum, pardal, chapim
Xô, cotovia
Xô, ave-fria
Xô, pescador-martim
Some, rolinha
Anda, andorinha
Te esconde, bem-te-vi
Voa, bicudo
Voa, sanhaço
Vai, juriti
Bico calado
Muito cuidado
Que o homem vem aí
O homem vem aí
O homem vem aí
Imagem: Jimw's

segunda-feira, 4 de junho de 2007

E por falar em delicadeza...




Por mais raro que seja, ou mais antigo,



Só um vinho é deveras excelente.



Aquele que tu bebes, docemente,



Com teu mais velho e silencioso amigo.


Mário Quintana