quarta-feira, 30 de julho de 2008

Breve história de um anjo


No fim da tarde, antes da primeira estrela aparecer no céu, um anjo triste e sonhador pairou no ar da cidade. Poucos o viram, pois nessa cidade, cercada por prédios e fumaça, quase ninguém mais olha para o céu.

Apenas uma menininha, dessas que os anjos nunca se esquecem, lançou seu olhar despreocupado para cima. E, em meio à fumaça e ao resto dos raios de sol, fez com que o anjo triste sorrisse.



Imagem: Bhavna.

terça-feira, 8 de julho de 2008

Discutindo Saudade


Saudade é um vocábulo próprio do nosso idioma, afirmam os portugueses. Se o é realmente ninguém pôde provar, tampouco o conseguiram um sinônimo em outras línguas. Os estrangeiros, ao aprenderem tal palavra, encontram um substantivo que nomeia o sentimento de ausência de uma pessoa ou lugar.

Nós, os filhos deste Gigante Tropical, tínhamos que inventar ou buscar nos recônditos da prosa do rei de Portugal D. Duarte, onde saudade se escreve suidade, uma denominação para o calor que o coração latino exala ao se afastar dos seus amores e bem-quereres.

A saudade está presente nas relações do brasileiro, por natureza. Outros povos poderiam questionar, e eu entenderia perfeitamente tal questionamento, o que vem a ser essa danada. Nenhum espaço apertado de um papel fibroso, ou como impõe a modernidade – nenhuma folha computadorizada, nenhuma reflexão ligeira e nem um minuto de imaginação, bastariam para garantir, numa única palavrinha, o seu sincero significado. Em alguns idiomas precisaríamos de uma frase inteira para expressar esse calor feiticeiro.

Os curiosos se perguntam onde nasceu e o que é a saudade. Ela já virou monografia, tese de lingüística, ocupou o tempo de catedráticos, foi motivo de insônia a discentes excepcionais, e nem assim chegou-se a uma conclusão confiável.

O fato é que saudade é coisa nossa, brasileira, e como expressão singular, há de denominar sentimentos complexos. Saudade é o choque de temperatura: quando fervemos de emoção e uma onda fria põe-se a nos resfriar, sentimos no peito um peso maldito... é a saudade; e quando um fogo abrasador derrete a geleira do coração, despedimo-nos da dor e sentimos a alma flutuar... sim, flutuar, pois saudade pode ser serena ou turbilhão.

Saudade é tudo, é a falta de membro num corpo são.

O beijo de despedida compartilhado rapidamente no portão, motivando suores embaixo do lençol pela madrugada afora, é a saudade cúmplice. Uma lágrima voluntariosa que inunda o túmulo dos entes queridos em dias de finados, certamente é saudade fatal. O estremecer do corpo estirado numa cama solitária de hotel é saudade parceira. O filho que ainda não veio é saudade esperança. Os lugares desconhecidos, é a saudade sonhadora, e as recordações de ontem é saudade imediata. O arrumar fotos no álbum de formatura, ah... é a deliciosa saudade primavera! O bilhete aéreo da lua-de-mel encontrado na mudança resultante da separação, que pena, carimbou-se de saudade dividida. E... sempre, o ronronar ancião que emerge das cadeiras de balanço, delicadamente dispostas de viés na varanda ensolarada, aonde as avós se põem a recordar o passado, só pode ser a saudade afortunada.

Por descender de um império a saudade é forte e lustrosa, destemida e conquistadora; mas assim como foram vencidos os romanos, vencemos dia a dia as aparições febris desta espécie de lembrança dolorosa. Mas... como garantir que a saudade nasceu de solitas, solitatis? A saudade pode ter se enfronhado, se debatido com outros tantos povos ancestrais... ela pode, por exemplo, ser namorada do durere – romeno amargo que por si só nos esclarece a dor; ou prima robusta do crioulo cabo-verdiano que nos segreda anseios num doce gemido de sodadi.

Mesmo após decifrar sua linhagem, expor as suas ramificações, preferencialmente em forma de diagrama ovalado, o Brasil ainda há de perguntá-la: porque viajastes tanto antes de descansar sobre os meus coqueirais?

Hoje penso, finalmente, e insisto em acreditar, que a saudade veio das fronteiras da Espanha, sob escrita arredondada de soidade, para ser expressão primeira do povo brasileiro. Após a sua partida, os galegos choram desolados, compreensível, restaram-lhe apenas soledad.

Antes de classificá-la com um nome ou apelido, o país já se perdia nas vertigens desse enorme sentimento. Então, eu me pergunto: que me importa saber de onde veio esta palavra apimentada se ouço a sua voz em todas as tardes assombradas? O importante, não há dúvida, é destacar que o seu inventor, seja ele quem for, esqueceu-se de emprestar à saudade, uma cor qualificada. Se o amor é azul, há que se pintar a saudade de branco, de ausente; porém, se acaso ela cobrir os pensamentos com todos os raios luminosos visíveis incidentes, há que aceitar a sua verdadeira origem: a saudade veio da composição elementar de um instante obscuro.
Texto: Stael Gontijo.
Imagem: Pamela Masik, da coleção Pain in the Faces.