quinta-feira, 29 de março de 2007



Ressaca nas águas de um rio



"... Rios todos com nome e que abraço como a amigos..."
João Cabral de Melo Neto.


Onze horas da manhã de domingo. Há pouco, o sol entrava pela janela do carro e impedia meu sono. Levantei no suor da minha humana poesia e ainda, um pouco bêbado. Dá para ouvir as vozes daqueles que acordaram cedo para rebater a embriaguez da noite passada. Alguns com cervejas nas mãos. Outros, café, sucos e água da bica. Eu me arrasto até eles, segurando um maço de cigarros e minha escova de dentes. Não sei o que faço primeiro. Resolvo pelo filtro vermelho. Enquanto fumo, escuto algumas histórias da noite, que fogem da minha memória. Não me culpo.

Depois da fumaça, a delícia de ter os dentes limpos e o hálito puro. Pronto, sigo morro abaixo até o rio. Já com o peito nu, prenunciando o momento a vir, assisto o sol em poesia atravessar os galhos das árvores, por entre as folhas. A cada passo, a simplicidade vai tomando forma e cores, quase irreais. Esqueço todas as outras coisas criadas pelo homem. Vou de encontro às águas que deslizam pelas pedras do rio. A imagem é leve, como eu, que vou ficando com a leveza de uma criança. A beleza indecorosa invade o domingo de março. Outono é sua estação, mas a temperatura engana.

Preparado, solto meu corpo da ponta da pedra mais alta. O contato com a água tem suavidade de um carinho inesperado. Bato os braços e vou de encontro à queda. Fecho os olhos e deixo-me atingir pelo turbilhão. Agora, faço parte de suas águas, como as pedras do seu caminho. Uma borboleta azul passa. A branca pousa no meu ombro. Minha cabeça fica leve. Minha ressaca escorre. Deságuo em pura tranqüilidade.



Daniel Rubens Prado,
Outono de 2007.
Rio Acima – Pousada Amont



Imagem: Blue Rose Interlude.


By Julia Garcia.


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segunda-feira, 26 de março de 2007



Bem perto do longe



Ele jamais se esqueceu do último beijo.
Ela o jogou no fundo da mala.
Ele ficou com as lembranças. Ela voou de alma vazia.
Ele esperou a Primavera. Ela antecipou o verão.
Ele girava pela Avenida do Contorno.
Ela ondejava pelos Champs Élysées...
Ele, vagabundo de porta de bar. Ela, demoiselle dos bistrôs.
Ele, cachaça amarga. Ela, vinho tinto.
Ele, mãos dadas com a esperança.
Ela, sempre de mudança.
Adieu.
Daniel Rubens Prado,
Outono de 2007.
“Ah, eu bebi. Com que sede eu bebi”. (Rilke)
Imagem: Collage Paris 11
By Deborah Starr Shannon

sexta-feira, 16 de março de 2007

Uma fotografia que seja...

Foi na posse da nova diretoria da empresa. Quase trezentas pessoas aguardavam a solenidade. O fotógrafo, novato, estava sem lugar. Entre uma foto e outra, observava, com encanto, as colegas de trabalho. Uma mais suave que a outra.

Em um canto do pátio, longe de onde se aglomeravam os funcionários, debaixo de todo aquele sol de ferver mamona, uma visão. Talvez não fosse a visão do paraíso, mas, com certeza, uma imagem estonteante. A mais bonita, desde seu primeiro dia de trabalho.

Ela? Deve ter lá seus vinte anos de idade. Usava um vestido de alcinha estampado e volta e meia sorria com ternura. De pele branca, tipo escandinava, jorrava um charme sem diplomacias. Olhos claros e cabelos castanhos. E, ainda, cheia de curvas. O fotógrafo, óbvio, em um só verso.

A vontade dele foi esquecer toda aquela cerimônia e fazer um ensaio fotográfico. Daqueles que deixariam Bob Wolfenson sem emprego. Não conseguiu parar de olhar, nem por um minuto, a moça que sorria em um sol para lá de bom-dia. Ela, só tinha olhos para um sujeito vestido de terno e bigode, que observava, de cara boa, o longo discurso.

O rapaz que tirava fotos achou, que a partir daquele dia, encontraria a moça pelos corredores da empresa. Era só deslumbramento, até o momento em que o sujeito – sim, o do bigode – acenou e pediu para que batesse uma foto dele com sua família.

Pois lá estavam – pai, mãe e a linda filha – distribuindo sorrisos para a lente sonhadora do jovem fotógrafo, que, embora menos, também sorria.


Daniel Rubens Prado,
Verão de 2007.

Quero me casar...

terça-feira, 13 de março de 2007


Janelas abertas

A imagem que tenho é de uma mulher deitada embaixo de um pé de jabuticabas.

É puro conforto. As janelas, do quarto onde estou, abertas. O suficiente para querer matar o tempo.

Não preciso tocá-la. O vento torto é amigo. O perfume chega e paira no quarto. Ela coloca uma jabuticaba na boca e, sem mastigá-la, faz biquinho e sorri.

Volto e me deito. Sei que ela está logo ali. Brinca com os meus sentidos. E o vento? Faz assobios e eu penso na delicadeza do mundo. Ah, ciúmes das oscilações do tempo sobre sua pele.

Volto para a janela. Ela não mais está embaixo da árvore. Ouço seus passos na escada. Os degraus rangem. Ela se aproxima. Sou um sorriso só. Largo.

Ela se deita.

Dorme vestida de sonhos, sob o lençol que ninguém sabe se é brisa ou manto. Nada ousa interromper sua calma.

Junto ao vento, velo seu sono.

Puras brisas.

Daniel Rubens Prado,

Verão de 2006.

Imagem: Woman in bed,


by Eli Levin.