terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

A transformação da inocência



Presenciei, perante meu tronco, a dor e a crueza humana. A mais seca das maldades.
Estupefata, vi o sofrimento e o grito de libertação. Suas asas estavam quebradas...
Havia apenas o semblante ríspido e a materialização de um turvo morcego.
E chovia para sempre...

Eu, ali parada, fazia chover por uma eternidade.
E com instinto fatal, tomada por veemente eloqüência...
Num gesto sóbrio, porém me sentindo culpada, travei a única oportunidade de vida.
E os gemidos aumentaram...

O poder que me era dado naquele instante me encheu de voluptuosidade, puro frenesi!
Cabia a mim, só a mim, a decisão de deixar ou não a vida se manifestar.
E brinquei de Deus! Com sabor único do pecado, pude sentir minha alma sendo humanizada.
E ao ver minhas mãos comprimindo a vida, gritei de horror.

Assustada, me mantive estática.
E, na taciturna noite, só eram ouvidos os gemidos trêmulos do morcego.
Aquilo parecia uma forma de purificação, de catarse...
O animal, quase sem força, me olhava com desejo.
E me senti feminina...

Meu sangue fervia e minha alma continuava fria.
A chuva aumentava e aliviava minha culpa.
Ou será que sempre fiz chover? Não importa...
A situação causava pavor e mesclava-se a minha nova condição:
A de ser humana.



Texto: Luciana Andrade Gomes.Imagem: Edvard Munch.

8 comentários:

Sil disse...

Uma lindeza, Lu.
Pura sensibilidade com as palavras. E com a vida.

(Humanas demasiadamente humanas, sentindo o desejo nos tomar, nos rodopiar, nos fazer pulsar, nos exaurir e seguir seu curso pela eternidade que não nos pertence...)

Besitos.

Ademir Gargary disse...

Meu Deus! Tão profundo, puro e verdadeiro. Que coisa linda! Fiquei até sem folego. Meus parabéns!! Beijos
Ademir Gargary

Unknown disse...

jah te falaram q vc eh apaixonante? muito doido seu texto.mta sensibilidade mesmo. vc escreve e fala mto bem!!! alem de ser linda, simpatica e inteligente claro!!! cada dia fiko mais impressionado com vc..!!! Parabens, vc merece!!! Bjinhos!!!

Luciana Andrade disse...

Muito obrigada pelo carinho, pessoal! Grande Beijo!

Silvinha, Nietzsche tinha razão. Todos os nossos valores, nossa noção de culpa e de obrigação... nossa ideia de sofrimento e nossa limtação... Tudo isso é porque somos humanos, demasiadamente humanos...


"Este ódio de tudo que é humano, de tudo que é 'animal' e mais ainda de tudo que é 'matéria', este temor dos sentidos... Este horror da felicidade e da beleza; este desejo de fugir de tudo que é aparência, mudança, dever, morte, esforço, desejo mesmo, tudo isso significa vontade de aniquilamento, hostilidade à vida, recusa em se admitir as condições fundamentais da própria vida" Frederico Nietzsche.

Lu Mantovani disse...

Lu Andrade, pessoa inteligente, né?Parabéns! Bjs

Letícia Salles disse...

Uma mistura de docilidade e desejo vista em qualquer errante pelas estradas da vida. Parabéns pelo talento e pelo delicado trabalho literário. Aguardo ansiosa por novas linhas.

Oswaldo disse...

parabéns! gostei muito

Comumente Estranho disse...

Poxa! que massa! Uma poesia intensa que faz a gente ficar tentando desenhar a cena. Palavras precisas, mas misteriosas, que nos fazem hesitar sobre qual realmente seria a imagem a ser construída. talvez sejam só sentimentos, com uma imagem distorcida, ainda em construção... Como ser preciso chegando à condição de humanidade?