Abro
os olhos. No sonho, você dizia: sim, e balançava
a cabeça com suavidade; eu estendia a mão
para tocá-la, mas não alcançava seu rosto; você se
afastava, olhando para mim.
Levanto da cama, me aproximo do espelho. No
fundo da retina, sua imagem aparece: nua, você
brinca na água. Tiro a roupa, mergulho. Você sai
na outra margem, se enrola na toalha.
Entro
no chuveiro. O vapor me recorda aquela noite: você
bebe, encostada no balcão. A fumaça do
cigarro te envolve. Finjo não te observar, você
disfarça. Peço outra cerveja.
Visto
a jaqueta, lembrando de como te protegia quando você
tinha medo: eu te apertava contra o peito, você se
encolhia e fechava os olhos, sentindo meu cheiro. Um sorriso devolvia seu rosto
de menina.
Saio
de casa. No ponto de ônibus, meus olhos te acompanham: inquieta,
você anda de um lado para o outro, olhando o relógio.
O vento atrapalha seu cabelo. Você vira de costas, suspende a gola do casaco.
Sente frio. Seu ônibus chega, você
sobe. Do último degrau, olha para mim.
Em
frente ao Mercado Central, você entra. Parece cansada. Fico em pé,
ofereço meu lugar. Você agradece e senta, abraçando
a sacola de compras. Eu adorava me aconchegar ao seu colo, sentir sua pele, a
cadência da respiração aumentando. E, sem mover a cabeça,
brincar com a língua no brotinho do seu seio. Você ria
e me acariciava, o coração disparado.
Na
repartição, atendo o telefone. Com sua voz macia, me pergunta se é da
Floricultura. Não, não é (mas poderia ser). Não
vendem flores, aí? Não vendemos (como seria bom que...). É o número
que está no catálogo, você
reclama, impaciente. Ofereço ajuda, você
desliga.
Saio
do trabalho, volto para casa a pé. Na avenida, a multidão
caminha apressada. Você passa por mim muitas vezes. Seu olhar é um
vão do cansaço à ilusão.
Para
encurtar a noite, tomo um caminho mais longo. No bar da esquina, quatro homens
jogam cartas, gritando. Por você, eu apostaria o dobro do que não
tenho.
Na
janela do quarto, fumo o último cigarro. Um avião
cruza o céu, rumo ao norte. Vênus ainda brilha no horizonte.
A
cama é um deserto branco, vazio, assustador.
Texto: Maurício Meirelles.
3 comentários:
Gostei muito desse texto. Poético, simples, terno. Continue!
Lindinho!!!!! Adorei!!!!!
Maurício Meirelles, achei seu texto fantástico. Pelo tema, que sempre me toca em especial, e que também costuma ser matéria-prima para mim. Pelo fluxo no tempo, tão sereno, e ao mesmo tempo pungente ao referenciar a própria dificuldade do narrador em separar passado e presente. Pela justeza entre o andamento do dia do narrador e suas memórias. Pelo caráter cíclico, da cama à cama, fechando perfeitamente a equação da melancolia e da saudade. Da pegada sexual singela e, ao mesmo tempo, marcante, posto que foi única. E por algumas coisas mais que privo-me de citar aqui para meu post não ficar parecendo crítica literária.
Cara, achei seu "textinho" - a despeito de qualquer possível despretensão que ele inicialmente talvez tenha tentado transparecer - um textão, de grande consistência, de uma completude muito significativa em face do tamanho enxuto. É o tipo - raro - de texto que a gente lê sem ficar editando mentalmente, achando que o escritor poderia ter feito diferente aqui e ali. É o seu texto, tal como é, que encanta.
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