segunda-feira, 19 de julho de 2010

Ainda penso

Lá fora vai a Lua, vestida belamente como uma santa. Incide pálida. Já faz hora que está ali. Não titubeia. Estou sentada, hermética, na minha pequena bacia, outrora tacho de fazer marmelada. Tento enxergar as letras grandes e taciturnas do romance. Luto com uma lasca de unha no canto do dedão. Adoro cutucar pés de um modo geral, não tenho preconceitos renitentes.

Queria jantar agora a sopa de cenoura amarela, de quando era só uma “petit” - três pratões – na cozinha da minha outra vó. Tento achar um credo qualquer prá rezar baixinho. Ainda está lá lutando no clarão de luar a pequena estrela. De longe me fita. Está assim há meses, procurando um olhar. Agora é que me acha. Rebelde. Com vontades de fazer fogueira de lenha nova, só prá ver no fogo estourar – chiar – chiado de verde.

Vai amanhecer um dia, e há de me achar assim, prá me pedir prá acordar o Sol com balanços largos de braço, que nem dos homens que guiam os aviões – aqueles bichos prateados enormes que fazem medo na minha irmã.

Tem tempos que não penso neles. Os que dividiram ou compartilharam a minha casa primeira – lá longe no escuro, onde era a barriga de minha mãe.

Chamo “tesa” o Inverno, prá embolar meus pés debaixo da camisola comprida e branca que sempre sonhei no meu filme. E ficar de balanço prá frente e prá trás até me jogarem um xale – Contra regra.

Puxo meus cabelos pelos dedos, enroscam-se. Estou ali prá lembrar alguém. Mas ainda estou jovem. Minhas pernas são firmes, meu olhar nem tanto. A Lua ou a Santa ainda me observa. Estou prá gata ou loba? Mas não vou uivar. Ainda.

Trago um pouco a bacia prá frente – me ajeito na almofada que está equilibrando o Atlas pelo Mundo – ela range “raspenta” – e eu rio, um rio sequinho de cascalhinhos rosáceos.

Penso como deve ser bom jogar palavras ao vento – ver como flutuam, voejam ou se pesadas, tombam. Fico imaginando se ponho uma poesia no meio do caminho em cima ou embaixo daquela pesada palavra e pedra. Sou de tudo. Mas amo blues. Música que pede cigarro, uma bebida vertente e um cheiro de amor do passado. “Cheek to cheek”. A bacia agora ri, seu riso de metal, me assombra. Brrrrrrr....

Será mesmo que as margaridas vêm? A minha prima se foi com elas num janeiro doentio. Meus avôs bem antes, todos – nem sobrou nenhum.

O livro estava lá sentado, queria começar. Mas eu não tinha pressa. Estava ali, catando coisas na minha cabeça. Piolhos de idéia. Prá botar numa página e sonhar de estourar no dedão as mais pestilentas. Sonho, de menina, de ser famosa com letras, filhas ou ideais.

Mas a estrela que agora me cativa não me liberta. Procura em mim meu ocaso adolescente. Parece que nunca vai achar. Acredito mesmo nas guerras sem tinta? Brancas, tão brancas como essa luz de lua e os ossos de Cervantes. A passarela negra agora já não permite que a estrela me veja inteira. Viro e pego um cigarro escondido. Estão como anjos os cravos argentinos na minha jardineira. Mudos e solícitos. Já vem a madrugada. Não sei o que vem dessa aí. Sorrio para ela como os colibris. Que riem demasiado cínicos, sem dentes. Contra-regra – Uma taça de vinho – vermelho e borbulhante. Sem gelo. Apenas o inverno me basta. Deito-me até os cabelos enroscarem meus pés. O livro se levanta, sai. Dou de ombros. Ainda penso que vai amanhecer um dia.



Texto: Ana Guerra.
Imagem: Bill Henson.

Um comentário:

Anônimo disse...

Estreia maravilhosa, Ana.
Que você continue cobrindo nossas páginas negras de devaneios e doçuras.

Beijos, alegrias e poesias,

Daniel Rubens Prado.