quarta-feira, 23 de junho de 2010

O mito de Helena


“Pra mim, seus olhos serão sempre um mistério”. Este é o último verso de um poema que tentei fazer e, agora, quinze anos depois, releio na última página de um caderno antigo de escola. Um poema incompleto, sem título ou coerência. O que me chama a atenção nessa “charada em verso” são as inúmeras menções aos olhos de uma mulher. Uma mulher de pele clara e cabelos dourados. Na época, uma garota que despertou em mim, durante um bom tempo, uma atração calma e enigmática. E não foi preciso recorrer à memória para saber de quem se tratava. Seu nome estava grafado diversas vezes nas três páginas anteriores, como um mantra.

Helena.

Aluna exemplar, carregava em si uma atmosfera meiga e erudita - bem diferente de mim, sempre metido e confusões e fracassos escolares. Ela estudava piano, eu tentava entender as letras das músicas de Jim Morrison escutando The Doors. Recordo-me de quando, no pátio do colégio, observava-a de longe. Admirava o seu jeito ao mesmo tempo lépido e contido; seu rosto de traços marcados e, ao mesmo tempo, angelical. Tudo em Helena era a síntese de contrários. Perfeitos. No entanto, ainda hoje não consigo dizer que cor tem seus olhos. Quantos matizes de azul e verde já me vieram à cabeça, ao tentar reproduzir seu retrato em minha memória?

Pessimista sou até hoje, mas na época eu era igualmente tímido. Não me atreveria sequer a perguntar as horas para ela nos corredores. Sabia seu nome porque o colégio não era assim tão grande. Todos se conheciam de alguma forma. Mas certa vez, olhei direto nos olhos de Helena e fiquei ainda mais inquieto em relação à cor que brotava de suas íris.

Devíamos ter uns quinze anos - debutávamos nas paixões, ansiávamos por viver. Num desses bailes da época, estava ela – elegante como uma princesa. Seus olhos estavam esverdeados e calmos. Fiquei perplexo, pois dias atrás os mesmos olhos estavam azuis como uma pedra turquesa. Após algumas taças de vinho branco, deparei-me com ela. Não me lembro bem o que eu disse. Apenas tentava encarar a dimensão mais profunda de seus olhos.

Algum tempo depois, um beijo. E foi um beijo tão estranho, que era como se um católico beijasse a imagem da santa mais devota, desejando ao mesmo tempo despi-la. Calada, Helena ficou poucos minutos com o corpo próximo ao meu, relutante em se entregar. Seu olhar se parecia realmente ao de uma santa; com um verde cada vez mais claro, manifestava uma espécie de compaixão, de acolhimento.

Passado o Baile de Debutante, nossa relação se resumiu a trocas de olhares ternos e breves comprimentos, sinceros. No pouco tempo que se passou até deixarmos de estudar no mesmo colégio, eu já aceitava o fato de que Helena não passava de um mito criado por mim; ou seja, era a maneira que eu dispunha de chegar próximo a uma idéia de amor, sentimento ainda recente. Tanto foi que não abandonei o mito - observá-la era um exercício de conhecimento do amor que brotava em mim.

Dez anos depois, reencontrei Helena em um festival de bandas num galpão do centro da cidade. Seu rosto continua o mesmo: a mesma boca carnuda, a tez branca, o mistério no olhar. Cumprimentamo-nos e, para minha surpresa, Helena recordou do Baile de Debutante. Disse que se sentiu mal por ter tratado a situação com frieza, que suas amigas zombaram dela por ter se relacionado com alguém aparentemente mais jovem. Seus olhos voltavam a se tornar azuis turquesa, imponentes e confiantes. Não hesitei nem por um segundo:

- Vamos reparar esse erro histórico?

Ela, enternecida, respondeu sorrindo:
- Você não existe, que lindo.

Mas a vida já nos tinha levado por caminhos opostos, ela já era comprometida. E a noite acabou assim.

Tenho apenas boas lembranças de Helena. Seu carinho e sinceridade me mostraram que o poder da imaginação nos prega peças, nos ilude, mas nos faz conhecer os limites - às vezes inexistentes - entre mito e realidade, quando se trata de amar. Hoje, aos trinta, rimos como crianças das coisas passadas. A amizade entre nós tem um tom de nostalgia. Trocamos confidências e nos deleitamos em trocar olhares ternos.

Helena continua bela como sempre. Mas, pra mim, seus olhos serão sempre um mistério.



4 comentários:

Val Prochnow disse...

delicioso seu texto, Fred! tenho pra mim que passamos a vida inteirinha em busca da sensação causada pelo primeiro amor ou mais, pela descoberta do amor.

Bruno Sales disse...

Fred, seu texto é como um mar calmo. Vai e vem, numa boa.
Bom demais.

Anônimo disse...

Meu maldito bom amigo,

Que delícia de prosa coberta de poesia. Que bom ter você de volta, despejando palavras e delírios nas páginas negras que você ajudou a criar, num momento que, certamente, deixou mais lírico (e ébrio) este “mundo duas doses abaixo do normal”.

Que seus devaneios sejam constantes no Projeto Eutanásia.

E Deus tenha piedade de suas blasfêmias e seus sacrilégios.

Um abraço do seu irmão,

Daniel Rubens Prado.

João Tonucci disse...

Fred,
Essa prosa está tão jovial e fresca quanto suas lembranças. Belo retorno!