segunda-feira, 14 de junho de 2010

Sonhos

Acontece que depois dos sonhos nunca mais fui a mesma. Uma semana. Uma semana sonhando com enormes fios de cabelo brotando. Nasciam na língua cresciam garganta adentro boca afora e era sempre a mesma coisa o mesmo sonho em seqüência de atos repetitivos.

Gritava.

E seguia uns dois três passos entrava num banheiro instalado no centro da sala daquele lugar imundo que eu sabia em sonho ser minha casa. No ralo do box via as mechas todas caírem pelo buraco sujo feio fedido. Arrancava-os com uma lamina de barbear amarelada enferrujada gosmenta - restos de sabonete barato entranhado na fresta cortante que mal dava conta de fazer o serviço: sempre a mesma lamina sempre o mesmo banheiro sempre o mesmo cheiro podre. E quando terminava de passar a palma da mão pela língua pra senti-la lisa – e eu tinha a sensação de que passava a um só tempo mão e língua em uma axila suada e decadente – é que saía pra dar de cara com a minha cara diante dos restos do espelho que ainda teimavam em se agarrar à moldura dourada retorcida em rococós e flores desbotadas.

Gritava por minha mãe. E por todas as mulheres da família algumas de fato e outras que nunca havia visto e eram sempre as mesmas mulheres as reais e as imaginárias reunidas em torno do cubículo no centro da sala. Elas vinham cheias de perguntas e braços e pernas embolados numa disputa para entregar-me uma toalha e era sempre uma mulher desconhecida que me estendia um pano sujo e que dizia em voz alta e cheia de gravidades acabou por hoje pode acordar agora.
E eu seguia corredor afora cabeça baixa pés descalços até lugar nenhum e era sempre esse o exato momento que acordava suando garganta dolorida como se tivesse gritado em vão. Ou como se alguma coisa estivesse agarrada à goela prendendo ar respiração saliva voz.

Acordada seguia ao banheiro cheiroso limpo de espelho generoso e sem reparos. Casa lar – meus, reais. Abria a boca lavava a cara preparava um chá com torradas e voltava para o quarto arrastando os pés insones por algumas horas e dormia somente quando o sol ou alguma luminosidade entrava pela fresta da cortina da janela.

Até o último dia a última noite o último sonho em que tudo parecia igual os fios a língua o banheiro o fedor o ralo o grito as mulheres a mulher desconhecida pano sujo.

Minha avó chegou agigantada e luminosa um tanto delicada pra quem a conheceu em vida: afastou uma a uma as mulheres do banheiro, gentilmente.

Depois sorriu farto me estendeu toalha macia roxa abundante em seus floreados na barra.
Acabou. Pode acordar agora.

Era um domingo e eu não precisei manter os olhos acesos para saber que o dia prometia luz e sol fartos.


Texto: Val Prochnow.
Imagem: Sofii Velislava.

9 comentários:

Anônimo disse...

Val,

a cada texto seu que eu leio, eu reafirmo a sua condição de minha escritora favorita.

Arrasou!

Beijos, alegrias e poesias...

Dan.

Anônimo disse...

Val você é demais! me segurou de olhos abertos quando eu achava que não conseguiria mais nem sonhar. agora eu vou querida.. ao lado de duas coisas macias, você escreve muuito, beijo! saudade! tati.

b'slt disse...

Somente gigantes afastam pesadelos. Gigantes que fazem parte de nós. Gigantes que vêm nos trazer coisas novas. e a gente sabe quando chegou o momento

Anônimo disse...

val, para mim a principal importancia de um escritor é conseguir passar a sua mensagem para os outros de uma forma clara e/ou imaginativa. conheço esse seu sonho (pesadelo) nao é de hoje. mas confesso que suas palavras escritas, consensadas nesse texto me fazem imaginar, enxergar e ate me emocionar diante seu sonho que antes era so so seu. agora è de todos nos que tivemos o prazer de le-lo.
assim como o poeta, vc tbm esta na minha condiçao de escritora favorida.
bejo camila

Val Prochnow disse...

queridos, me faltam palavras pra agradecer as palavras de cada um... nada do que eu diga fica à altura do que sinto. de verdade. obrigada, obrigada!
beijos todos,
Val

Assessoria de Comunicação disse...

Val,
Gostei muito.
Abraços

Stael Gontijo

Brisa Marques disse...

Que se abram as janelas logo após os sonhos velados e as insônias!

Val Prochnow disse...

obrigada Stael, conheço teu livro e gosto muito! Brisa, seus textos são muito deliciosos, já li quase o blog todo, não comentei ainda, mas vou fazer isso logo logo!
beijos!

Anônimo disse...

Val...
Depois de tanto tempo,lendo voce. É um texto lindo! Voce consegue descrever as emoçoes,coisa que imagino só os grandes escritores sabem fazer e voce esta entre eles.
Me sinto feliz e orgulhosa por voce. Beijos - Fafá