O sol fustiga as ruas estreitas, quando tomo o ônibus. Pela janela de trás, vejo a cúpula dourada da mesquita flutuando sobre Haram Esh-Sharif. Recordo a ascensão do profeta e me despeço.
Texto: Maurício Meirelles.
Imagem: Argus Caruso.
Tratamento: Patrícia Tavares.
Dentro, pouca gente. Na maioria, árabes fodidos, que vivem do lado oriental. Como eu. Escolho o assento junto ao velho, para não chamar atenção.
No distrito judeu nos param. Quando o soldado entra, sinto meu coração disparar sob a túnica, e acho que vou explodir ali mesmo. Baixo os olhos, em prece, e vejo as botas se aproximando.
A ponta do fuzil toca minha cabeça. Documentos, ordena. No bolso, meus dedos roçam o detonador. Ainda não. Controlando os movimentos, estendo o passe. Tire os óculos. E com a coronha levanta meu queixo.
Sustento o olhar, sorrindo de leve. Meus olhos traçam uma linha entre seu rosto e o chão. Arqueio ligeiramente o corpo e uno as mãos. Humildade. Gostam disso. Ele joga os papéis no meu colo e aborda outro árabe.
No ponto, diante da sinagoga, um judeu gordo sobe. Confere o troco da passagem, duas vezes, e enxuga o rosto. Senta de frente para mim, escondendo seu desprezo atrás do jornal: ATAQUE AÉREO MATA 15 CIVIS EM HEBRON; onde nasci. Sente-se melhor agora? Mesmo com tanto explosivo a um metro do seu rabo?
O ônibus segue pelo bairro cristão. No mercado, muita gente entra. Quase seis horas. Sinto um arrepio quando a puta encosta em mim. Profanação. Volúpia. As tatuagens, em breve, serão chagas de purificação.
Deixamos a cidade antiga pelo portão de Jaffa. Agora o ônibus corre pela avenida, em direção à estação central. Livre dos muros, a víbora arremete sobre a presa.
Levanto, cedendo lugar para a mulher com a criança. Um sorriso, e a mãozinha estende a maçã. Agradeço, em hebraico, e digo a ele para jejuar. É o Ramadã. A mãe olha com espanto e muda o garoto de lado. Meu pequeno Mohammad teria essa idade.
O motorista diminui a velocidade. Advirto a mulher de que é a última parada antes da estação. E com os olhos, suplico que desçam. Ela me ignora.
A cidade exala o calor do dia. No oriente, a adaga do crescente surge, acendendo as primeiras luzes. No reflexo da janela, vejo meu filho. Sorrindo. Para mim.
Texto: Maurício Meirelles.
Imagem: Argus Caruso.
Tratamento: Patrícia Tavares.
16 comentários:
maurietz!! Adoro esse conto tão triste! Bom lê-lo online também. Beijos!!
Este conto parece um curta, visual demais, consigo ver cada cena desenhada na minha cabeça.
Sensacional.
Intenso, gostei muito
Repetir a leitura desse conto (ou curta né Patz) é uma delícia!!! Parabéns Moretz!
Adoro este conto do MM.O autor consegue mostrar um lado muito humano e sentimental de um tema tão polêmico.Parabéns !!!
não conhecia este escritor, mas estou de boca aberta muito bom!
alguém sabe se ele tem livro lançado?
angela
Gostei muito.
Absolutamente real
Parabéns
Ei Angela: ainda não tenho livro publicado, embora essa seja uma gesta. Obrigado por me ler. Abcs
Muito bom o jogo entre tensão e alívio... realmente é fácil de projetar visualmente a localidade e as personagens da trama. Parabéns, meu caro!
gostei muito.
parabens
Pois é, Vitor: no começo do cinema, era a literatura que influenciava a narrativa visual; hoje é o contrário, né não? Abcs
realmente vcs têm razão, parece um curta mesmo...
muito bom.
conto otimo.
parabens
Muito belo esse conto. Toca no ponto, tenso, faca amolada...Parabéns, Maurício
Nunca tinha entrado neste blog, obrigada Paty, pelo convite!
Abriu um universo...
alto nível
parabens
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