sábado, 10 de setembro de 2011

Ramadã

O sol fustiga as ruas estreitas, quando tomo o ônibus. Pela janela de trás, vejo a cúpula dourada da mesquita flutuando sobre Haram Esh-Sharif. Recordo a ascensão do profeta e me despeço.

Dentro, pouca gente. Na maioria, árabes fodidos, que vivem do lado oriental. Como eu. Escolho o assento junto ao velho, para não chamar atenção.

No distrito judeu nos param. Quando o soldado entra, sinto meu coração disparar sob a túnica, e acho que vou explodir ali mesmo. Baixo os olhos, em prece, e vejo as botas se aproximando.

A ponta do fuzil toca minha cabeça. Documentos, ordena. No bolso, meus dedos roçam o detonador. Ainda não. Controlando os movimentos, estendo o passe. Tire os óculos. E com a coronha levanta meu queixo.

Sustento o olhar, sorrindo de leve. Meus olhos traçam uma linha entre seu rosto e o chão. Arqueio ligeiramente o corpo e uno as mãos. Humildade. Gostam disso. Ele joga os papéis no meu colo e aborda outro árabe.

No ponto, diante da sinagoga, um judeu gordo sobe. Confere o troco da passagem, duas vezes, e enxuga o rosto. Senta de frente para mim, escondendo seu desprezo atrás do jornal: ATAQUE AÉREO MATA 15 CIVIS EM HEBRON; onde nasci. Sente-se melhor agora? Mesmo com tanto explosivo a um metro do seu rabo?

O ônibus segue pelo bairro cristão. No mercado, muita gente entra. Quase seis horas. Sinto um arrepio quando a puta encosta em mim. Profanação. Volúpia. As tatuagens, em breve, serão chagas de purificação.

Deixamos a cidade antiga pelo portão de Jaffa. Agora o ônibus corre pela avenida, em direção à estação central. Livre dos muros, a víbora arremete sobre a presa.

Levanto, cedendo lugar para a mulher com a criança. Um sorriso, e a mãozinha estende a maçã. Agradeço, em hebraico, e digo a ele para jejuar. É o Ramadã. A mãe olha com espanto e muda o garoto de lado. Meu pequeno Mohammad teria essa idade.

O motorista diminui a velocidade. Advirto a mulher de que é a última parada antes da estação. E com os olhos, suplico que desçam. Ela me ignora.

A cidade exala o calor do dia. No oriente, a adaga do crescente surge, acendendo as primeiras luzes. No reflexo da janela, vejo meu filho. Sorrindo. Para mim.



Texto: Maurício Meirelles.
Imagem: Argus Caruso.
Tratamento: Patrícia Tavares.

16 comentários:

Alda Rezende disse...

maurietz!! Adoro esse conto tão triste! Bom lê-lo online também. Beijos!!

Paty Tavares disse...

Este conto parece um curta, visual demais, consigo ver cada cena desenhada na minha cabeça.
Sensacional.

Paulo marques disse...

Intenso, gostei muito

Marcelo Nery dos Santos disse...

Repetir a leitura desse conto (ou curta né Patz) é uma delícia!!! Parabéns Moretz!

Xandi Junqueira disse...

Adoro este conto do MM.O autor consegue mostrar um lado muito humano e sentimental de um tema tão polêmico.Parabéns !!!

Anônimo disse...

não conhecia este escritor, mas estou de boca aberta muito bom!
alguém sabe se ele tem livro lançado?
angela

Nelson disse...

Gostei muito.
Absolutamente real
Parabéns

Mauricio Meirelles disse...

Ei Angela: ainda não tenho livro publicado, embora essa seja uma gesta. Obrigado por me ler. Abcs

Vitor Maciel disse...

Muito bom o jogo entre tensão e alívio... realmente é fácil de projetar visualmente a localidade e as personagens da trama. Parabéns, meu caro!

Anônimo disse...

gostei muito.
parabens

Mauricio Meirelles disse...

Pois é, Vitor: no começo do cinema, era a literatura que influenciava a narrativa visual; hoje é o contrário, né não? Abcs

ana carolina disse...

realmente vcs têm razão, parece um curta mesmo...
muito bom.

Anônimo disse...

conto otimo.
parabens

Murilo disse...

Muito belo esse conto. Toca no ponto, tenso, faca amolada...Parabéns, Maurício

Ana Bernardes disse...

Nunca tinha entrado neste blog, obrigada Paty, pelo convite!
Abriu um universo...

marina brioche disse...

alto nível
parabens