Vovó teve vários nomes. A certidão de idade, de 13 de março de 1875, era Luíza Sidônia. De Diamantina. Onde se formou professora, na mesma turma da conterrânea Júlia Kubitscheck.
Além de Luíza, Vovó foi Minha Mestra, Mestra Luíza, Mãe Mestra, Dona Luíza, Naná e, para nós, os netos, e todos os alunos do recém-criado Ginásio Mineiro de São Miguel y Almas de Guanhães, Mãe Naná. Este último codinome ganhou do primeiro neto, que aprendeu, simultaneamente, a falar “Mamãe” e “Naná”, criado que foi na casa da avó.
Nos primeiros anos em São Miguel y Almas, Mãe Naná era citada como “a dona que comia carne para cachorro”.
Com razão. Quando, recém-chegada, apareceu, pela primeira vez no Açougue Municipal, pediu um quilo de fígado:
- De fígado?
- Sim, senhor, de fígado de boi.
O açougueiro lambuzou-se em espantos:
- A senhora tem algum cachorro?
- Não, meu senhor. O fígado é para eu fazer um picadinho pro meu marido.
O açougueiro, despencando das grimpas da incredulidade, informou:
- Toma aqui. A senhora pode levar esse trem todo. Aqui, dona, só cachorro come essa porcaria.
E, entregando-lhe o embrulho com uns dois quilos de fígado, emendou:
- Toda vez que a senhora quiser mais, pode mandar buscar. Vai ser de graça... na bistunta.
Com o tempo, Vovó, multiplicando conhecimentos e amizades, deu de oferecer às visitas fígado picadinho com pimenta, cebolinha e farinha de mandioca, acompanhados de uma pinguinha de lei. O povo de São Miguel aprendeu. E gostou. Papa fina.
Não vou descrever aqui o rosário de virtudes da senhora minha avó. Como o fato de ter nos ensinado, a mim e aos meus irmãos, as primeiras palavras em francês, ao mesmo tempo que nos alfabetizava. Além do mais, Dona Luíza portava a avoenga verdade que doura a aura de todas elas: avó é avó. O resto são progenitoras.
Eu já morava em Belo Horizonte. Fazia o Curso Clássico. Trabalhava num banco, sofrendo todas as agruras dos estudantes interioranos: milionário em sonhos, zerado em recursos. Morava numa república, ao lado de mais oito companheiros do nordeste mineiro - que, hoje, sei lá porque, passou a ser “leste mineiro”. Geografias... Tais elementos disputavam comigo o penoso título de “o mais pobre”, ou “o menos remediado”.
De vez em quando nossos pais, fazendo mais tripas do que corações, mandavam alguns tesouros. Coisas de altas supimpitudes. Lingüiça feita em casa. Queijos de meia cura. Dúzias de ovos caipira. Doces de lei, em fôrmas de cachos de uvas, papagaios, cachorros, etc. Bandos de luminárias, pés-de-moleque e goiabadas. E mais aquelas coisas que só o coração das mães adivinha e inventa.
Num aniversário meu, mês de maio, Vovó cometeu um desfalque no seu salário de professora aposentada. Num gesto congênito às avós, mandou-me uma nota de 50 cruzeiros. Cédula enorme. Quase do tamanho de uma fronha. Dobradinha dentro de um envelope. Acompanhada de uma carta cheia de carinhos e conselhos. Estes últimos, impossíveis de serem seguidos, naquela faixa da vida. Aliás, até hoje, confesso.
Em exageros de afeto, a distinta senhora aplicou, num canto do envelope, a sigla mágica “S. A. t. g.”. Ou seja, “Santo Antônio te guie”, pois naqueles tempos os correios eram erráticos e imponderáveis. Daí a necessidade de se apelar ao santo para que as cartas chegassem direitinho ao seu destino. Hoje fico pensando como o coitado do taumaturgo, mergulhado dia e noite em cavilosas e perigosíssimas conspirações casamenteiras, conseguia tempo para bancar o carteiro...
“S. A. t. g.” na quina do envelope, a santa avozinha o sobrescritou assim:
- “Ao interessante jovem” – ...e, no restante, meu nome e o endereço. Vocês não imaginam quantos anos levei para limpar da minha ficha o apelido de “Interessante”.
Uma batalha infrutífera até hoje. Pelo menos para o Paulo Emílio, um dos sobreviventes da velha república. Onde quer que me encontre, me presenteia com o infame adjetivo.
Uma noite, eu comboiava uma dona de polpudos atributos dianteiros e traseiros num jantar boca livre. Sabem onde? No Automóvel Clube. Nem bem adentramos o esnobe salão, o Paulo Emílio, já com dose industrial de uísque no copo, fuzilou:
- Oi, Interessante... Tudo em cima?
A dona destilou um sorriso maquiavélico, cubou-me de alto a baixo e bombardeou-me de ironias:
- Pois não é que você é interessante mesmo?
Ah, Mãe Naná!
Texto: Melhiades Cherubino.
Além de Luíza, Vovó foi Minha Mestra, Mestra Luíza, Mãe Mestra, Dona Luíza, Naná e, para nós, os netos, e todos os alunos do recém-criado Ginásio Mineiro de São Miguel y Almas de Guanhães, Mãe Naná. Este último codinome ganhou do primeiro neto, que aprendeu, simultaneamente, a falar “Mamãe” e “Naná”, criado que foi na casa da avó.
Nos primeiros anos em São Miguel y Almas, Mãe Naná era citada como “a dona que comia carne para cachorro”.
Com razão. Quando, recém-chegada, apareceu, pela primeira vez no Açougue Municipal, pediu um quilo de fígado:
- De fígado?
- Sim, senhor, de fígado de boi.
O açougueiro lambuzou-se em espantos:
- A senhora tem algum cachorro?
- Não, meu senhor. O fígado é para eu fazer um picadinho pro meu marido.
O açougueiro, despencando das grimpas da incredulidade, informou:
- Toma aqui. A senhora pode levar esse trem todo. Aqui, dona, só cachorro come essa porcaria.
E, entregando-lhe o embrulho com uns dois quilos de fígado, emendou:
- Toda vez que a senhora quiser mais, pode mandar buscar. Vai ser de graça... na bistunta.
Com o tempo, Vovó, multiplicando conhecimentos e amizades, deu de oferecer às visitas fígado picadinho com pimenta, cebolinha e farinha de mandioca, acompanhados de uma pinguinha de lei. O povo de São Miguel aprendeu. E gostou. Papa fina.
Não vou descrever aqui o rosário de virtudes da senhora minha avó. Como o fato de ter nos ensinado, a mim e aos meus irmãos, as primeiras palavras em francês, ao mesmo tempo que nos alfabetizava. Além do mais, Dona Luíza portava a avoenga verdade que doura a aura de todas elas: avó é avó. O resto são progenitoras.
Eu já morava em Belo Horizonte. Fazia o Curso Clássico. Trabalhava num banco, sofrendo todas as agruras dos estudantes interioranos: milionário em sonhos, zerado em recursos. Morava numa república, ao lado de mais oito companheiros do nordeste mineiro - que, hoje, sei lá porque, passou a ser “leste mineiro”. Geografias... Tais elementos disputavam comigo o penoso título de “o mais pobre”, ou “o menos remediado”.
De vez em quando nossos pais, fazendo mais tripas do que corações, mandavam alguns tesouros. Coisas de altas supimpitudes. Lingüiça feita em casa. Queijos de meia cura. Dúzias de ovos caipira. Doces de lei, em fôrmas de cachos de uvas, papagaios, cachorros, etc. Bandos de luminárias, pés-de-moleque e goiabadas. E mais aquelas coisas que só o coração das mães adivinha e inventa.
Num aniversário meu, mês de maio, Vovó cometeu um desfalque no seu salário de professora aposentada. Num gesto congênito às avós, mandou-me uma nota de 50 cruzeiros. Cédula enorme. Quase do tamanho de uma fronha. Dobradinha dentro de um envelope. Acompanhada de uma carta cheia de carinhos e conselhos. Estes últimos, impossíveis de serem seguidos, naquela faixa da vida. Aliás, até hoje, confesso.
Em exageros de afeto, a distinta senhora aplicou, num canto do envelope, a sigla mágica “S. A. t. g.”. Ou seja, “Santo Antônio te guie”, pois naqueles tempos os correios eram erráticos e imponderáveis. Daí a necessidade de se apelar ao santo para que as cartas chegassem direitinho ao seu destino. Hoje fico pensando como o coitado do taumaturgo, mergulhado dia e noite em cavilosas e perigosíssimas conspirações casamenteiras, conseguia tempo para bancar o carteiro...
“S. A. t. g.” na quina do envelope, a santa avozinha o sobrescritou assim:
- “Ao interessante jovem” – ...e, no restante, meu nome e o endereço. Vocês não imaginam quantos anos levei para limpar da minha ficha o apelido de “Interessante”.
Uma batalha infrutífera até hoje. Pelo menos para o Paulo Emílio, um dos sobreviventes da velha república. Onde quer que me encontre, me presenteia com o infame adjetivo.
Uma noite, eu comboiava uma dona de polpudos atributos dianteiros e traseiros num jantar boca livre. Sabem onde? No Automóvel Clube. Nem bem adentramos o esnobe salão, o Paulo Emílio, já com dose industrial de uísque no copo, fuzilou:
- Oi, Interessante... Tudo em cima?
A dona destilou um sorriso maquiavélico, cubou-me de alto a baixo e bombardeou-me de ironias:
- Pois não é que você é interessante mesmo?
Ah, Mãe Naná!
Texto: Melhiades Cherubino.
Imagem: António Manuel Abreu.