Há seis meses na África, precisamente Moçambique, pude verificar o quanto essa terra é rica, porém subjugada nas mãos dos exploradores da indústria da fome. Pude perceber muitos contrastes. Nunca observei tantos carros de luxo a circular pelas ruas. Difícil se deparar aqui com uma dessas “furrecas” que encontramos em nosso país, interrompendo o trânsito e provocando quilômetros de engarrafamento. Empresas estrangeiras e organizações não governamentais utilizam veículos de luxo por, no máximo, um ano – e, ao aparecer o menor dos defeitos, cuidam de os exportarem para algum parente por preços irrisórios, trocando-os por novos.
As ONGs (não quero generalizar) vêem nesse pobre continente, uma forma de maximizar seus lucros, às custas dos que mais precisam de ajuda humanitária. Ajuda esta que não se resume apenas em alimento, vestuário, material escolar ou medicamentos, mas também em uma dose de carinho e atenção. “Estamos aqui, não queremos ser apenas seus bancos”.
Vivemos brigando e fazendo campanha contra o trabalho infantil no Brasil. Aqui, meus caros amigos, campanhas com esse cunho, significaria bater em ferro frio. Até hoje, não consigo me conformar em ver como crianças tão pequenas, ou miúdas, como se denominam aqui, são capazes de carregar fardos de diferentes géneros alimentícios na cabeça – arroz, milho, tomate, papaia, alface, etc, como se ali carregassem toda a tristeza do mundo. E o pior: são, a todo momento, questionadas sobre os preços dos produtos vendidos, entregando-os a valores mínimos, não obtendo sequer o lucro suficiente para novamente encher os cestos na manhã seguinte para continuar a labuta.
Pois é, as crianças. Muitas são as formas de exploração a que são submetidas as crianças nesse velho mundo. Mesmo antes de terem seus corpos formados, crianças, principalmente meninas, já se iniciam na vida sexual. Bandidos, assim os denomino, estrangeiros ou locais, acham normal manter relações sexuais com meninas de quatorze anos ou até menos. Denominam essas crianças de “quatorzinhas”. Brincam na maior naturalidade em mesas de bar: “essa é a minha saideira, tem uma quatorzinha me esperando em casa”. Letras de bandas famosas fazem referência a essas “quatorzinhas” em suas canções, como sendo troféus, principalmente nas mãos de homens que serviriam para serem seus avós. Juro, meus caros, que chorei ao ver essa constatação. Crianças que são pegas na porta de casa, ainda com bonecas nas mãos e com o consentimento dos pais, que ao final do mês, recebem uma merreca de meticais (moeda local), para ajudar no sustento da família.
Dentre as inúmeras coisas que me incomodam, queria ainda fazer alusão a só mais três que acho primordial destacar. Defendendo um pouco o público feminino, um fator que me deixa irritado é a forma em que muitas mulheres ainda são tratadas aqui. Vivem como se fossem “As Mulheres de Atenas” de Chico Buarque. Atingiram um grau de independência trabalhando fora de casa, ocupando importantes cargos públicos, porém ainda não são tratadas com o devido respeito que merecem. Vivem como se fossem serviçais de seus maridos.
Os empregados aqui, de qualquer espécie, principalmente os domésticos, são tratados (outra vez,
sem querer generalizar) como escravos. Regra-se tudo. Ganham em três meses o que eu gasto aqui em uma noite, com amigos num buteco. Possuem uma carga de trabalho super cansativa. Muitos trabalham de seis da manhã às dezessete horas, fazendo de tudo. Isso me chateia muito. Algumas pessoas acham um grande absurdo minha funcionária ganhar novecentos meticais, chegar às oito da manhã e sair às quatorze. Mas eu não consigo mudar o mundo não é. Tento dar minha contribuição, porém....
A questão da disseminação da Aids. Não sou pessimista, mas acho que ainda está um pouco longe para os africanos conhecerem uma geração com baixos índices de soro positivos. Não sei se por uma questão cultural (ainda está muito cedo para eu poder fazer um julgamento preciso) porém, a poligamia aqui é coisa quase corriqueira. Muitos homens possuem mais de uma família, ou mantém relações extraconjugais. Nada melhor para a disseminação de uma doença que sem parecer exagerado, está promovendo uma verdadeira devastação no continente.
Mas, quero frisar que minha intenção, principalmente ao escrever pela primeira vez para o “Projeto Eutanásia”, não é a de oferecer aos leitores algo tão pesado e carregado de informações tristes. Poderia ter enviado uma poesia, uma crônica, um conto... Porém, entendam isso como um desabafo, escrito sem me preocupar com nenhum padrão estilístico, nem com
formas. Escrito como um verdadeiro escarro, tapa na cara. Coice. Soco na boca do estômago. Não quero entrar com o pé esquerdo, e sim, despir-me de toda a parte que me aflige aqui neste continente, para poder assim, enviar-lhes posteriormente belas informações sobre as maravilhas que se pode encontrar por aqui. Não se vê apenas coisas que nos entristecem aqui nesse lado do mundo. Pelo contrário. Quando digo de contraste, o que mais se contrasta aqui na África, e especialmente onde estou, Moçambique, são as dores com as lindas cores; paisagens, povo receptivo, com alegria de viver, mantendo-se fortes perante as adversidades.
Texto e imagens: Pablo Casarino.