Era tão descabida em si que toda vez que ficava sozinha olhava para suas mãos. Não as reconhecia como suas, desentendia aqueles dedos e, sobretudo, a palma branca, cheia de linhas confusas e misturadas; feito novelo de lã da cesta de vime da casa da avó que já não há. Entrava no banheiro de casa, logo depois do almoço, logo depois dos encontros festivos da grande família (que também já não há), e sentava-se no chão – que a mãe sempre advertira ser chão sujo, esses de banheiros, só para ter a sensação do estranhamento. O estranhamento das suas mãos. E ficava por horas assim: nesse fixo exercício de se perceber.
“Não é minha essa mão, não é essa minha mão!”
“Não é minha essa mão, não é essa minha mão!”
Abrir e fechar; mexer os dedos lentamente: palma, dorso, palma, dorso, palma, dorso. Bater palmas é voar? Não, definitivamente. Reconhecer a mão, tocar os pés n’alguma coisa que não seja o chão talvez seja a chave pr’algum entendimento. E sempre que o desconforto no quadrado do chão sujo (?) do banheiro calhava de vir, por encanto, a necessidade de ares de terra surgia, imediata. Corria, a menina, para o topo da mangueira. Mangueiras costumam ser generosas: galhos em forma de bancos, de braços que recebem pássaros, gentes, calangos e tudo mais que respira e tem desejo de abraço.
De lá do alto, olhava os pés. Porque os pés não causam espanto? Estranhos em forma - são reconhecidamente seus. Embala os pés ao sabor do vento imaginário e sente-se dona dos pares: embora aprecie mais o esquerdo, mais torto e dotado de feridas e arranhões: sempre gostou de cicatrizes e nunca usou trabalhar tatuagens previamente estilizadas. Prefere o arrombo de um tombo, a marca de um desvario e de um descuido. As tatuagens do acaso, talvez.
E as mãos, ali. Ainda a causar estranheza sublime. Agarra o galho próximo e isso não é uma desverdade. A mão, em utilidade, é real. Mas pairando no ar, dorso, palma, dorso, palma, dorso, palma, dorso, palma, é um mistério obtuso e indecifrável, ao menos a ela, sempre, que se dava ao exercício da contemplação.Cresceu, a menina. Tomou ares de mulher. E ainda sozinha, agora, não mais somente no banheiro da casa, ainda cisma de verter o olhar para as mãos. E busca, incessante, o sentimento de tempos remotos: a estranheza de não se saber, aquela estranheza pura e adocicada e febril que tanto comovia a criança de antes, aquela estranheza incômoda e arredia. Mal sabia, a menina, que ali estavam, nos mistérios das mãos, a chave para toda a percepção do que hoje é o maior mistério: o de desvendar seus desusos, habilidades e fazê-las, das mãos, o par de asas indispensáveis para os vôos intangíveis d’agora.
Texto: Val Prochnow.
Imagem: Woman's hands holding a cigarette, do site http://www.allposters.com/
5 comentários:
Palmas, palmas, palmas!!!!
Lindo o texto Val, e por um momento pensei que, em um suspiro de Gabriel García Márquez, ela trocaria as suas mãos (e pés) com as da mangueira generosa. Se pura viagem, não deixa de ser poético: em vez de raízes, os vôos intangíveis de agora.
Legal!
Beijos.
Brunim.
Mana, tu arrasa e me deixa muito emocionada. Queria muito ler você em um romance, pq não faz isso? faça!
tua escrita é um afago em nossas almas.
beijo da mana Lu
Querida!
Muito querida que é você!
Amo!
Suspirei...
Beijos, aninha
Brunim, que delícia de comentário, querido! Amo Garcia Márquez, e seria uma linda opção mesmo essa 'troca'...
eu tenho o umbigo plantado num pé de mangueira...
Mana amada, nem sabia que vc entrava aqui! Fiquei muito feliz, obrigada!
Aninha, você é que me provoca suspirins bons, sempre!
É incessante o desejo de continuar a leitura até os últimos pontos, que texto bom, com o passar dos tempos, nosso gosto fica apurado e nossos olhares ficam mais saltitantes quando nos deparamos com coisa tão bela.
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