quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007


O náufrago

Avenida Amazonas. Primeiro quarteirão.
O homem se curvou diante de uma das palmeiras, fechou os olhos e deu a primeira golfada.
Eu, com o café quente em punho e uma ressaca daquelas, observava de longe todo aquele mal-estar. Os transeuntes não o viam. Nem olhavam.
Ele começou. Vômito. Vômito atrás de vômito.
Ali, no centro da cidade, mais um ser naufragado em suas desilusões.
Busquei um copo de água bem gelada e me aproximei.
Ele me encarou.
Seus olhos lacrimejavam. Ofereci-lhe o copo. Ele aceitou. Deu um gole fundo. E me disse, com um jeito de pesar:
- Estava no INSS. Minha senha é 353. Não agüentei esperar.
Perguntei se queria que eu chamasse uma ambulância. Disse que não precisava:
- Vou ligar para o meu filho. Ele virá me buscar.
Desejei sorte e voltei para o ar condicionado da repartição pública onde trabalho.
A vida continuou.
Lá fora.

Daniel Rubens Prado,
Verão de 2007.



Imagem: Tirada do site www.fotosearch.com
Autor desconhecido.

terça-feira, 6 de fevereiro de 2007


As meninas do terraço


As meninas do terraço se divertem. Julia, Lúcia e uma amiga brincam de esconde-esconde. Porém, na brincadeira de esconder, as meninas contam até dez. No meu tempo de brincar, na minha infância interiorana na cidade grande, que nem era tão grande assim, contávamos até cem. Volta e meia até estendíamos um pouco, para dificultar a procura.
No alto do prédio vejo as meninas que brincam cercadas entre as linhas estreitas que percorrem os ponteiros. O tempo é escasso. Há pouca liberdade para os olhinhos pequenos. Mas no entanto, escuto vozes cheias de esperança. Esperança de tempos melhores e livres.
Enquanto escrevo na tela pálida do meu computador, escuto os pequenos passos galopantes e os gritos de extase das três meninotas. Há alegria. A diversão no mundo da imaginação é garantida. Mesmo que daqui, a alguns metros de distância do terraço, um suposto poeta construa uma prosinha em homenagem a pobre infância das menininhas. Pobre de espaço, pobre de tempo.
Um grito de Júlia rompe a monotonia do começo da noite. Talvez tenha encontrado Lúcia e a amiga escondidas no mesmo lugar, em um tempo recorde. Achei aquilo divertido e quase fui lá brincar com elas. Mas provavelmente elas achariam estranho. Além do mais, sou grande demais para caber em qualquer lugar naquele terraço.
Depois, o silêncio tomou conta da noite sem lua. A mãe das garotinhas deve tê-las chamado para a janta. Nada mais divertido que uma sopa de letrinhas depois do esconde-esconde.



Daniel Rubens Prado,
Verão de 2007.

Imagem: Clock end Key,

By Jin Wicked

Mais no http://www.jinwicked.com/art/

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2007



POEMA SAÍDO DO ARMÁRIO

Ninguém para me escutar, bem no choro do meu grito mais surdo
Quando saberão de mim, do Outro que ama além, que sonha que ama?
Expulso de casa, sem vergonha e amigos, caminharei com minha mochila
Entre estrelas solitárias, meus amores brilhando ao meu redor
A vida que eu sempre quis, longe das paredes frias dos consultórios
Médicos, parentes, professores, burocratas & policiais me perseguem
Fujo para longe, North Beach, Ilha do Bananal, fossa dos oceanos
Onde me afundo em prazeres ocultos e profundamente adormecidos
Meus poemas escondidos, já serão então lidos por cada garoto medroso?
Cada cu tremendo de pavor na paralisia das horas do genocídio do amor?
Bocas mordendo lábios nos banheiros abandonados do Parque Municipal?
Enquanto isso somente a tristeza das minhas linhas, nenhuma platéia
Para minha auto-análise e exorcismo público ao som da macumba
Nenhum orelha limpa e ombros amigos pra desperdiçar meus segredos
Fujo então, na minha solidão deliciosa dos sonhos despedaçados
Pelo despertador do sol – maldito monstro que persegue os boêmios
Escuto Cazuza, converso com amigos amados que nunca saberão de nada
Até minha morte trágica, vislumbro o funeral, quem estará lá?
E então meus versos confessos serão lidos, veado desgalhado
O caixão baixará entre rumores e fofocas – estarei me deliciando
Acariciando coxas dos Anjos do Paraíso, fumando tudo em PassárgadaE rindo com fôlego do olhar de espanto das madames e seus cachorrinhos!

Jon Tonucci

imagem:

Stars Falls, Alexander Lyamkin

oil, canvas panel

sábado, 3 de fevereiro de 2007



DA MORTE DA PARTE DE TODOS


Vai, Narciso!
Vai...
Senta-te em teu trono
De vaidades
Enxerga o outro
Pelo ângulo do teu umbigo...

... E fica imóvel:
- Espelho fixo
E admira
- Espelho mente
Tua estética
- Espelho demente
Perfeita solidão

Até que um dia
A Morte chega
Também solitária
Porém discreta:

Vulto preto
- Espelho não enxerga
E aí...
Só restará de tua beleza
O mesmo cheiro de toda carne
Podre:
- Espelho quebra


Poesia: Valéria Prochnow.
Imagem: Broken Mirror,
Deb Stoner.

Mais em www.absolutearts.com.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007




Amor Platrônico


Levantou-se logo cedo e se instalou à frente do computador. Tinha os olhos latejantes e o coração cheio de saudade. Às sete da matina começavam a surgir os primeiros contatos. Observava atentamente cada janela que subia do canto direito, em baixo. Sua alma gelava a cada coincidência gráfica, mas não era a vez – nunca foi, talvez. O nome que esperava adormecia em vermelho. Ela o acariciava qual acalanto, mas seu desejo era despertá-lo, cuidadosamente, para lhe dizer o quão bonito estava o dia. Sentia-se bem assim, na falsa intimidade nostálgica do sono da manhã.
Sentia fome, já passava do meio-dia. E nada, nada. Foi até a cozinha, abriu a geladeira e retirou o prato frio que recusara na noite anterior. Deu duas garfadas e engasgou quando ouviu o sinal sonoro de alguém que a chamava – Era só uma amiga. Não respondeu. Guardou o prato novamente e voltou a esperar, sempre com os olhos fixos naquele ícone rubro. Pensava no que ele poderia estar fazendo. E se ele só existisse quando estava on-line?
Exatamente às cinco horas e quarenta e três minutos ele apareceu. O coraçãozinho dela disparou, suas mãos suavam. Ajeitou seu corpinho na cadeira, massageou o rosto e arrumou rapidamente o cabelo. Abriu a caixa de diálogo, mas sabia que não teria coragem de escrever. Para ela bastava contemplar a foto estampada na tela. Era como se ele estivesse na sua frente, vivo. De repente gargalhou quando leu o que ele escreveu na frente do nome. – Que legal, ele está de bom humor hoje! Disse ela, radiante. Achava que o conhecia mais do que ninguém.
De súbito, sentiu uma coisa estranha por dentro. Aquilo não era normal. Uma coragem sem tamanho tomou conta de sua alma. Decidiu que naquele dia era falaria tudo que estava guardado há tanto tempo. Não sabia por onde começar. Com as mãos espalmadas no teclado, ela pensava nas primeiras palavras. Com os olhos grudados nas teclas que ela escolhia com tanto carinho, digitou uma linda frase. Titubeou alguns segundos antes de teclar enter.
Quando ergueu a cabeça para conferir a reação de seu amado ele ali já não estava. Tudo aquilo que escrevera agora não passava de palavras pregadas em uma tela fria. Consternada, enxugou a única lágrima escorrida do seu olho. Sentiu certa raiva. Mas logo se acalmou e se afundou novamente na cadeira. O tempo não é problema para ela.



Texto: Fred Tonucci.