Chegou janeiro de 2014. O tão esperado novo ano trouxe consigo, apressadamente, a notícia de que meu grande amigo mineiro, Márcio Rubens Prado, havia falecido. Tardiamente avisada, não pude despedir-me dele. E só naquele momento percebi que nosso último encontro havia sido em fevereiro de 2007, ocasião em que concluí meu doutoramento na UFMG.
O período de doutoramento costuma ser uma etapa peculiar na vida de um profissional, na maioria das vezes docente em Instituições de Ensino Superior. Aqueles que conseguem chegar ao doutorado com afastamento total, meu caso e de outros colegas, gozam do privilégio de estarem distantes dos mundos que os circundavam em suas instituições. Rivalidades, problemas, destemperos, desânimos... Tudo pode ser deixado pra trás. Pelo menos por algum tempo.
E assim o pesquisador (jovem em sua maioria) vê-se diante de uma nova realidade, em que lhe é dada a oportunidade de mostrar a que veio, em que a reflexão é subitamente jogada em seu rosto, em que a maturidade vai sendo forjada aos poucos e que, muitas vezes, sente-se inseguro diante tantas dúvidas. Mas o que é a dúvida se não a porta para o conhecimento?
Pois bem, o pesquisador em formação enche-se de motivação e de orgulho por fazer parte de grupo tão seleto (é o que lhe dizem na semana de recepção) e passa a dedicar seu tempo às leituras, às discussões, às tentativas de encontrar respostas adequadas e, fundamentalmente, à busca insana por um bom problema de pesquisa.
E é nesse momento, paeafraseando meu mestre Carlos Alberto Gonçalves, que o pesquisador entra em sua bolha teórica e lá ele encontra amparo. Sente-se seguro e até arrisca em pensar em modelagens com diversas variáveis e distintos níveis de análise. Considera-se apto a devolver seu estudo e acredita que poderá trazer contribuições importantes a partir dele.
E a bolha teórica pode durar uma vida toda. Infelizmente. Ao contrário, em afortunadas ocasiões, o jovem pesquisador percebe que há um mundo lá fora, onde regularidades não são, de fato, "regulares". Que os padrões são meras simplificações que nos permitem lidar com um conjunto limitado de opções ao mesmo tempo. Que todo o conhecimento é fragmentado e, portanto, parcial. E que ele, o pesquisador, é apenas uma peça no gigante quebra-cabeça da realidade.
Aliviado por perceber sua pequenez, o pesquisador algumas vezes dedica-se a ampliar seus horizontes, fugindo do absolutismo cartesiano e jogando-se em caminhos pouco caminhados. E a busca por respostas vai criando asas e alçando voos mais amplos que permitem ver não somente a árvore, mas a floresta inteira.
Algumas vezes o pesquisador - no caso em tela, esta pesquisadora - tem a satisfação de encontar pessoas que lhe mostram mundos diferentes, olhares distintos, perspectivas até então ignoradas. E então, tal como está na Bíblia, faz-se a luz e tudo passa a ter outro sentido. Ou sentidos.
E aí é que minha história se cruza com a do saudoso e insubstituível Márcio Rubens Prado. Mineiro nascido na pequena Guanhães. Modestamente, chamava a cidade natal de centro do sistema solar. Figura ímpar, dotado de um senso de humor refinado e de cultura admirável, Márcio colecionava admiradores por onde passava, e seu carisma fazia com que muitos sentassem a sua volta para, apenas, ouvi-lo contar repetidas vezes sua coleção de causos. Personagens memoráveis entravam em nossas vidas e muitos bordões surgiam em cada história recriada por ele.
Embora tivéssemos quase quarenta anos separando nossas idades, tivemos uma identificação instantânea. No dia em que eu o conheci, já sabia que tinha encontrado um grande amigo. Um irmão de outras vidas, para quem acredita que elas existem. Graças à sua paixão pelo Grêmio, a empatia foi ainda mais rápida e nossas primeiras charlas tratavam do mundo futebolístico, à época um dos meus interesses. Além da tese que nascia, obviamente.
Falávamos todos os finais de semana e Márcio, diante de minha juventude, assumiu o papel de tutor, mostrando-me parte de seu universo literário. Conseguiu despertar o gosto pela leitura de ficção - há tempos por mim deixada de lado. A leitura acadêmica mostrava-se necessária e, algumas vezes, interessante. Mas havia um outro mundo lá fora, esperando para ser desvendado.
Jornalista, publicitário, escritor, revisor, boêmio, de esquerda. Tudo isso era Márcio Prado. E muito mais. Figura que não poderia ser resumida em poucas palavras, com uma vida plena de boas histórias. E um amigo de coração gigante.
Fizemos uma promessa de que jogaríamos sempre na mega sena e que, o que ganhasse primeiro, daria uma boa quantia ao outro. Qual o quê... Deixou-me sem meus milhões e com reduzidas chances de enriquecer.
Porque ser pesquisador não é, obviamente, caminho para enriquecimento. Pelo menos se estivermos pensando nas ciências sociais. Aplicadas ou não, não são consideradas de primeira grandeza e, reduzidas a sua pequenez, obtêm baixo reconhecimento de todas as naturezas, incluindo o monetário.
Mas não é sobre dinheiro que quero falar. Quero dizer da minha gigantesca saudade de meu amigo mineiro. Nos vimos a última vez em março de 2007. Sabedor que meu retorno ao País das Gerais - como dizia - não seria rápido ou mesmo provável, preferiu não despedir-se na forma tradicional e deu-nos um belo "carão" em minha festa de despedida.
Em sua defesa, disse-me que não gostava de despedidas. Que preferia pensar que seria um até breve.
De fato foi, porque mantivemos a amizade e o afeto que tínhamos e passamos a trocar cartas semanais. Algumas memoráveis. Especialmente quando ele, generoso, tratava de atualizar-me sobre as andanças de nossos amigos. Fulano está de namorada nova. Beltrano continua contando as mesmas piadas sem graça. Algumas vezes dizia-me de amigos que estavam adoentados e mostrava-se preocupado.
Márcio incentivava-me a escrever. Generoso, via em minhas cartas algo promissor e dizia que eu deveria dedicar-me à escrita. "Você é do ramo, garota", dizia ele. Talvez quisesse apenas motivar-me para que não perdêssemos o hábito de nos corresponder. Mas é fato que voltei a gostar de escrever livremente. Sem a preocupação com citações, autores, obras e referências.
Em 26 de maio de 2013, Márcio completou 80 anos. Com direito à festa surpresa e homenagens. Não consegui estar lá. Não nos vimos. Novamente, não nos despedimos. Minha ausência doeu fundo quando soube da sua prematura morte. Pessoas geniais deveriam viver por centenas de anos, espalhendo sabedoria e, no caso do meu amigo, alegria.
E então volto ao ponto inicial. O doutoramento foi um período intenso em minha vida. Academicamente, deparei-me com minhas fragilidades e angústias. Pessoalmente, enfrentei a separação de minha famílias e de meu marido. Fiquei sozinha diante de muitos medos.
Mas tudo valeu a pena. Não mudei o mundo, não fiquei famosa, não virei referência em minha área de estudos. Fui atrás das regularidades e dos padrões, trilhei o caminho menos arriscado. Nem sempre este é o mais promissor. Ao final de quatro anos, tornei-me doutora e demorei algum tempo a acostumar-me com o título. Na caminhada, ganhei amigos, dividi momentos de profunda emoção com pessoas especiais. Muitas delas deixaram marcas e saudades em minha vida.
E o Márcio foi uma delas. Olhando sua foto em nossa mesa de centro, minha filha Cecília pergunta: "Tu sente saudade do tio Márcio, mãe?". "Sinto muita saudade", é a minha resposta. "Ele virou uma estrelinha brilhante, mamãe. É legal". Ah, a inspiradora lógica infantil...
Tem razão, minha filha. Deve ser bem legal virar uma estrelinha brilhante.
Tem razão, minha filha. Deve ser bem legal virar uma estrelinha brilhante.
Crônica: Flávia Luciane Scherer.
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