domingo, 27 de fevereiro de 2011

Uma noite na Calábria


Cosenza fica no coração da Calábria, longe de atrativos turísticos e distante do mar. Mas foi nessa modesta cidade que vivi experiências surreais.

Acompanhado de meu sogro, Staś (esse “ś” pronuncia “sh”, como em inglês. Então a pronúncia é algo como “Stash”), subi uma das ladeiras que cortam o centro histórico. Passei por um sapateiro já idoso, fazendo seus próprios sapatos à moda antiga, com máquinas e equipamentos de tempos remotos. Na parede, os velhos retratos em preto e branco do que parecem ser os antepassados que tocaram aquele mesmo negócio. Ao lado dele, o filho, mais velho que eu, observava atentamente o trabalho do pai, que mostrava os detalhes do sapato que confeccionava, e o ensinava. Parecia que eu estava em um filme. Sem exagero. Sorrateiro, tirei um retrato da cena, sem que percebessem.


Mais a frente, um senhor, ainda mais idoso, sentado sozinho numa pequena livraria escura e antiga, notou que eu apreciava a vitrine e fez alguns gestos para que eu entrasse. Falava com dificuldade. E, ainda com mais dificuldade, movia-se. Ofereceu-me uma impressão de meia página que explicava a história da Praça do Duomo (catedral) local. Em seguida, entregou-me uma página impressa com uma poesia: “La Você Del Passado” (A Voz do Passado). A poesia é de sua autoria.

Apontou, então, para um pequeno livro e, com as mãos muito trêmulas, pediu para que eu o passasse. O título é “Una Vita: amori, speranze” (Uma vida: amor, esperança). É um livro de poesias, de sua autoria. Passei os olhos por algumas páginas e perguntei quanto custava. Cinco euros, ele me respondeu. E completou dizendo que eu podia oferecer o quanto eu quisesse, pela sua obra. Minha vontade naquela hora foi a de pagar 20, ou mesmo 50. Mas acabei comprando o livro pelos 5 euros sugeridos. Ele sorriu, agradecido.

Continuamos subindo pela rua estreita, já escura, até o Duomo, concluído em 1222. Em frente, havia um bar cuja fachada, de tão interessante, convidava a entrar. O bar foi inaugurado no ano de 1800, há 210 anos, e é administrado pela mesma família. Inúmeras gerações. Diplomas nas paredes, de todos os antepassados que geriram o negócio, decoravam o ambiente, assim como fotos de diversas épocas, recortes de jornais antigos com citações sobre o local, reproduções de pinturas que têm o bar como tema, um cardápio original de 1888 emoldurado na parede. Incrível.

Na descida, o sapateiro continuava a trabalhar e o filho, ao lado, apenas observava. Meu sogro quis entrar e pedir para fotografar a sapataria. Como eu era o intérprete da viagem, conversei com os dois, nos apresentando e aproveitei o ensejo para elogiar o trabalho deles e a cidade em que vivem. Agradeceram muito gentis, voltando-se de imediato ao calçado ainda por terminar.

O que era para ser apenas uma parada técnica entre a Basilicatta e a Sicília, tornou-se uma experiência inesquecível. E uma volta ao tempo. Um tempo que eu não vivi, mas no qual eu me senti extremamente confortável.

Texto e imagem: Leo Ladeira.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Primavera


As manhãs geralmente não me parecem tão belas como aquela me parecera. Havia no ar uma sensação de tranquilidade, as pessoas pelas ruas pareciam mais felizes e amáveis, embora não houvesse dúvidas de que absolutamente nada de diferente se destacava em seus rostos e em seus sorrisos. Sentia também um forte e agradável perfume sem origem, como se alguém tivera acendido gigantescos incensos de lavanda esquina após esquina. O sol iluminava a cidade e nos esquentava na exata necessidade de nossos corpos. Uma canção de Vivaldi, que somente eu parecia escutar e da qual não me recordo o nome, ampliava minha satisfação em caminhar por entre aquela gente.

E foi justamente caminhando por uma daquelas ruas que uma jovenzinha distraída foi prensada entre uma kombi escolar 1980 e um Citroën 2010-2011, com pintura cinza fosca, rodas de liga leve e elegantes detalhes em dourado nas portas e pára-brisas. Os motoristas não tentaram fugir, dezenas de ensandecidas pessoas começaram a sair de suas casas em direção à jovem e eu, que a tudo presenciei, continuava a achar a manhã muito bela e as pessoas mais felizes e amáveis, embora não houvesse dúvidas de que absolutamente nada de agradável se destacava em seus rostos atemorizados.

Texto: Frederico Alberti.
Imagem: Roy Lichtenstein.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

A transformação da inocência



Presenciei, perante meu tronco, a dor e a crueza humana. A mais seca das maldades.
Estupefata, vi o sofrimento e o grito de libertação. Suas asas estavam quebradas...
Havia apenas o semblante ríspido e a materialização de um turvo morcego.
E chovia para sempre...

Eu, ali parada, fazia chover por uma eternidade.
E com instinto fatal, tomada por veemente eloqüência...
Num gesto sóbrio, porém me sentindo culpada, travei a única oportunidade de vida.
E os gemidos aumentaram...

O poder que me era dado naquele instante me encheu de voluptuosidade, puro frenesi!
Cabia a mim, só a mim, a decisão de deixar ou não a vida se manifestar.
E brinquei de Deus! Com sabor único do pecado, pude sentir minha alma sendo humanizada.
E ao ver minhas mãos comprimindo a vida, gritei de horror.

Assustada, me mantive estática.
E, na taciturna noite, só eram ouvidos os gemidos trêmulos do morcego.
Aquilo parecia uma forma de purificação, de catarse...
O animal, quase sem força, me olhava com desejo.
E me senti feminina...

Meu sangue fervia e minha alma continuava fria.
A chuva aumentava e aliviava minha culpa.
Ou será que sempre fiz chover? Não importa...
A situação causava pavor e mesclava-se a minha nova condição:
A de ser humana.



Texto: Luciana Andrade Gomes.Imagem: Edvard Munch.