sexta-feira, 26 de março de 2010

DOCE DIABO


Amar;
Este verbo intransitivo?
Que nada!

Amar,
Este verbo intransigente,
Dominador,
Dominado.

Amar é entregar a alma,
Ao diabo.
Ou, quem sabe?
Tomar a alma
Do diabo.

Doce diabo!


Poesia: Carlos Niquini.
Imagem: Hugo Logg.

sexta-feira, 12 de março de 2010

Cartinha pra você


Querida Anita,

Hoje é dia 10 de março e estou em uma cidadezinha do interior, chamada Jeceaba. O trabalho do papai tem dessas coisas: tem dia que preciso viajar. Vou, trabalho e volto. Resolvi escrever esta carta para você, pois uma coisa estranha me aconteceu: você ainda não nasceu e, só por estar longe da barriga que lhe acolhe, estou morrendo de saudades.

É engraçado, sabe, minha filha? Eu ainda não te vi ao vivo. Só por umas imagens muito erráticas e nebulosas de um aparelho que se chama ultrassom. Ele consegue, por cima da pele da barriga da mamãe, filmar você lá dentro. Mas não dá para ver muita coisa. Só uns vultos que desenham sua silhueta.

Eu ainda não senti seu cheiro. Não sei a cor do seu cabelo. Não sei se você é tímida, se tem uma pinta, se faz charminho, ou se joga duro. Ainda, meu amor, nunca te encarei nos olhos. Mas tenho a certeza de que, quando este momento chegar, será o mais belo da minha vida.

Eu ainda não te ensinei nada. Nunca falei para você deixar de fazer isso ou aquilo, tomar o caminho tal, usar a cor assim, comer assado, falar mais alto ou mais baixo, conforme a ocasião. Nunca escutei, meu amor, a sua voz. Nem o seu choro. E mesmo assim bateu uma saudade enorme de você, aqui, dentro de mim, no coração do papai. Que coisa maluca, não é mesmo?

Mas acho que imagino por que: você já mora comigo. Na minha casa, meu amor, moramos felizes, eu, você e a mamãe. Eu, minha Anita querida, já converso com você, diariamente. Já cantei para você, já brinquei com você. Já acordei com seus chutes, já pensei que eles me respondiam. Já sorri e chorei por sua causa. Meu amor, eu já fiz o seu quarto, já pensei em sua rotina ao nosso lado, em nossa casa. Você já tem várias roupinhas, sabia? Já tem até música!

Anita, já tem tempo que te amo. E que penso, dia após dia, em fazer de você uma pessoa feliz. Quanta saudade me atormenta agora!

Do seu papi,

Bruno.
Dois meses antes de você nascer.


Texto: Bruno Sales.
Imagem: Ultrassom de Anita.

terça-feira, 9 de março de 2010


Meu nome é Maria. Aprendi desde cedo a trabalhar dissimulações: "muito prazer, que encanto é teu filho, que por do sol agradável". Sorriso gentil, aberto. Não os olhos – estes dois tristes e fundos – os olhos mais tristes que já pousei os meus – identificou certa vez um amigo, dos poucos que tive e que nem tenho mais.

Meu nome é Maria. Gostava mesmo é que fosse Vazio; ou Transparente. Ou Nada, ou nem sei mais. Talvez antes do vazio antes do nada antes da coisa se tornar transparente. Antes da coisa. Tempos atrás exercitei todo o rancor aquele mais profundo. E passei dias sem falar com o mundo, sem emitir um som que formasse algum sentido, sem vocalizar, sem ocupar o ar. Bom mesmo foi não ter que ouvir a própria voz. Achava que o bom seria que os outros se esquecessem de mim mas sou tão insignificante que nem deste gosto provei – não se deram conta de minha ausência. Ninguém, a não ser eu, Maria, sentiu minha falta. Botei-me forçosamente de cama – é virose, ensaiava caso alguém perguntasse. Esqueci-me de mim, larguei-me no meio e por cima da colcha alegre e colorida como eu não sou pra desfazer parte de tudo à minha volta.

Meu nome é Maria e por esses tempos foi Silêncio. Ou Escuro. Ando para todos os lados sem um destino já que só traçam destinos aqueles que por dentro carregam alguma espécie de esperança ou previsão. Qualquer esperança qualquer previsão. Meu nome é Maria e não nasci provida de sentimentos bons – só me acompanham os pesados e gordos que me fazem doer pernas e ombros, aqueles que arqueiam minha espinha e deformam membros e ossos. E foi sempre assim desde o momento que notei que era preciso mais do que tato olfato audição visão paladar pra se viver. Era preciso a memória dos sentidos para tudo se fazer, se formar pra dar, senão sentido, alguma expectativa de sentimento.

Meu nome é Maria e não tenho memória de infância de moça antes de tornar-me mulher nem de mulher antes de sentir-me velha. Tenho só um infinito de espaços dentro de algum lugar que não tem nome. Meu nome é Maria e podia ser Oco. E eu podia abandonar o medo e dissolver.
Texto: Val Prochnow.
Imagem: Emiliano Di Cavalcanti.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Haiti


Prata... é como o vejo
O claro brilho inocente
De toda uma lágrima
Branco como neve
De encontro com o mais
Forte contraste da pureza
O negro luto se encaixa
Por toda solidão
De um triste mundo
A esperança turva
De cores que nem sei o nome
Se desgasta
E o vermelho
Cobre o mar de pedras
Por sobre os corpos
Texto e imagem: Bruno Grossi.